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sábado, 11 de maio de 2013


Pelo filho, psicanalista Betty Milan faz a sua auto-análise

“Se é para ficar assim calado, vai embora”, disse a mãe ao filho de quase 30 anos que queria apenas dividir a casa, não os sentimentos. Ele se levantou, a encarou, fez como se fosse quebrar o computador dela, então virou-se e, de costas, retrucou: “Vê se não me telefona e não me escreve”. Passaram-se dias, semanas e ele seguiu sem dar notícias, deixando para trás uma mãe angustiada. Se não iria procurá-lo, ela precisava, de alguma maneira, desaguar o turbilhão de emoções que sentia. Resolveu, então, escrever-lhe uma carta que, no entanto, não tinha intenção de enviar. Assim nasceu Carta ao Filho – Ninguém Ensina a Ser Mãe (Record, 160 páginas, 29,90 reais), o 22º livro da psicanalista e escritora Betty Milan.
“Comecei a carta porque escrever era um modo de estar com meu filho. Não pensava em transmitir isso ou aquilo. Escrevia livremente sobre ele, sobre mim, sem a intenção de publicar. Mas o texto foi tomando fôlego”, disse Betty Milan ao blog VEJA Meus Livros. Segundo ela, três questões saltaram aos olhos enquanto escrevia: ela se deu conta de que não existe um modelo de mãe a ser seguido; de que precisava ouvir o filho, já que cada um é um ser único; e de, para cuidar de uma pessoa, às vezes é preciso abrir mão dela – o que a psicanalista explica na entrevista abaixo.
O resultado de Carta ao Filho é um relato profundo de uma mãe a um filho. Apesar de o título remeter ao emblemático Carta ao Pai, de Franz Kafka, o livro não é um acerto de contas como o que o autor checo busca fazer com o pai autoritário. Betty não repreende o filho, tampouco se culpa demais pelo que passou. O que faz é tentar compreender-se como mãe, ao mesmo tempo em que parece querer mostrar ao filho que ela não nasceu nesse papel, precisou – e precisa – aprender diariamente a função. Ressalta ainda que antes de ser mãe era uma mulher com a própria história de vida e continua sendo. Para que o filho, o cineasta Mathias Mangin, compreenda a mãe que ela é, a psicanalista construiu uma narrativa em que o toma pela mão e percorre com ele a sua trajetória.
Filha de imigrantes libaneses, Betty Milan nasceu depois de sua mãe perder o primeiro bebê. Por isso, diz que cresceu com medo de adoecer e de morrer, como se isso fosse lhe custar o amor materno. Ser a primogênita também a fez enveredar pela medicina, profissão do pai. A ligação profunda que sempre tiveram não permitiu a ela escolher outro caminho. Mas, ao passar pela concorridíssima seleção da Universidade de São Paulo (USP) – somente cinco mulheres na turma –, percebeu que aquela não era a sua escolha. Só continuou ao ver que poderia dedicar-se à psicanálise.

Ser a primeira filha em uma família de origem árabe, que esperava um homem na posição, a levou não apenas à medicina, mas também fez com que não se identificasse completamente com o sexo biológico. “Sem ter corpo de homem, eu tinha imaginariamente os direitos”, escreveu. Ao filho, conta que engravidar não foi natural, pois para ela significava perder o privilégio imaginário de ser homem. Em seu Consultório Sentimental, coluna que manteve por cinco anos no site de VEJA, entre 2007 e 2012, Betty respondia dúvidas de leitores, incluindo questões sobre maternidade. Em 2010, a uma mulher de 37 anos que dizia ser pressionada pela família e pelos amigos para ser mãe, mas não ter certeza de que queria ter filhos, respondeu: “Para ser mãe, é preciso estar inspirada”. Foi o encontro com Jacques Lacan, em Paris, que a inspirou.
Entre 1973 e 1978, Betty fez análise com Lacan, de quem se tornou tradutora, assistente e uma das pioneiras na divulgação de sua obra no Brasil. No processo analítico, superou a falta de identificação com as mulheres da sua família, que só reverenciavam quem gerava um filho homem, e com o sexo feminino de modo geral. Com Lacan, descobriu também que seu desejo de viver entre o Brasil e a França era uma reprodução do sonho dos seus ancestrais. “Como o Líbano foi, no século XIX, um protetorado francês, Paris era a referência dos meus avós e de outros imigrantes libaneses.” Na análise, afirma que ainda venceu a xenofobia, sentimento comum entre imigrantes e seus descendentes. Um preconceito que, aliás, é introjetado pelo grupo e não apenas dirigido a estrangeiros. A partir daí, ela passou a ter um interesse crescente por temas brasileiros, como o Carnaval e o futebol, e a escrever. Para dar conta dos textos, que publicou em forma de livro, colunas na imprensa e peças de teatro não publicadas, aproximou-se de pessoas que acabaram sendo importantes em sua trajetória, como o carnavalesco Joãozinho Trinta, o sociólogo Gilberto Freyre e o diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa.
Em Carta ao Filho, Betty não se abstém de questões mais íntimas, como o aborto que fez ainda estudante e o relacionamento aberto que mantinha com o marido, o historiador francês Alain Mangin. Conta ao filho único como conheceu Jean Sarzana (no livro, sob o pseudônimo de Oswald), ex-diretor do Sindicato Nacional dos Editores da França e seu atual companheiro, com quem manteve um romance em paralelo ao casamento com Alain. Diz, inclusive, que isso causou sofrimento ao marido. O casal aprovava que cada um mantivesse encontros com outros parceiros, desde que essas relações não se transformassem em algo sério. A regra foi rompida com aval de Alain, que morreu em 2004, causando grande dor à psicanalista. “Perdi a pessoa que mais apostou na minha liberdade. Me isolei para não encontrar os que faziam pouco do meu luto. Como se, por ser adúltera, eu não pudesse chorar o marido morto.”
Betty se desnuda ao filho no livro, mas é bastante delicada na maneira de escrever e também no modo como levanta questões e como fala do seu estilo de vida. Ele não é apresentado como o mais correto e ela, inclusive, conta que o filho discorda de vários de aspectos, como a infidelidade conjugal. E, mais do que falar de questões pessoais e da própria trajetória, ela diz como se sente como mãe, excessivamente apegada ao filho, tentando cortar o cordão umbilical de um adulto formado. As 160 páginas de Carta ao Filho podem ser lidas de um só fôlego. A escrita simples, com um tom coloquial que mescla pronomes “você” e “te”, torna a leitura ágil. Como ela mesma afirma no livro, seu texto “é uma estilização da oralidade”. O mais importante é que, mesmo endereçado a Mathias, ele traz reflexões universais sobre a relação entre mães e filhos.
Quando a senhora começou a escrever a carta, que ideia queria passar ao seu filho? Esperava algo tão autobiográfico, que percorresse tanto da sua trajetória? Meu filho e eu nos desentendemos e ele se afastou. Para estar com ele, comecei a escrever a carta. Num primeiro momento, isso foi tudo. Não pensava em transmitir isso ou aquilo. Escrevia livremente sobre ele, sobre mim, sem a intenção de publicar o texto. Mas ele foi tomando fôlego e acabei publicando porque fiz uma série de pequenas descobertas graças à escrita. Basicamente, aprendi três coisas: não existe modelo de mãe nem tampouco mãe-modelo – todas nós erramos. Cada filho é um e, portanto, a mãe aprende a ser mãe ao escutar o próprio filho. A mãe precisa um dia dizer “vai”, ou seja, cuidar pode ser sinônimo de se separar. Foi o drama da separação que deu origem a uma das músicas mais bonitas dos Beatles, She’s Leaving Home. Era uma quarta-feira, cinco horas da manhã, quando a filha, depois de deixar uma carta, fechou silenciosamente o quarto, desceu até a cozinha, abriu sem barulho a porta de casa e saiu. Ao pisar do lado de fora, “ficou livre”, diz a letra. E a mãe se lamenta quando devia bendizer a liberdade da filha, pois quem ama aposta na liberdade do outro.
A senhora se sentiu diferente ao concluir essa escrita? Com a escrita, o meu filho e eu nos reaproximamos. O simples fato de escrever nos leva a enxergar a realidade de forma diferente e a mudar de conduta. Por isso, a carta pode ser um ótimo recurso quando há desentendimento. Sugiro inclusive no meu siteque as mães se valham desse recurso. Por outro lado, como rememorei o passado, acabei me religando à vida que tive e tenho independentemente da função materna.

Há algum fato no livro que seu filho desconhecia antes de ler? Sim. Nós pouco havíamos falado do que vivi durante os anos 1970. Claro que ele sabia da extravagância dos pais, que participaram ativamente da revolução sexual. Na carta à mãe, que ele escreveu a título de resposta ao livro e foi publicada na revista Bravo (publicada pela Editora Abril, que edita VEJA – confira aqui), ele se refere a nós como “um casal extravagante”. Felizmente, meu filho gostou do texto por considerar que me debrucei sobre a vida “com a lente do otimismo”.
Em relação ao amante, a senhora afirma que Mathias já sabia, mas vocês já haviam falado sobre ele abertamente? Só depois que fiquei viúva falei de Oswald para o meu filho, o homem que se tornou o meu parceiro depois da morte do meu marido. Mas Mathias já estava a par do encontro, pois os filhos sabem a verdade. O triângulo é uma situação complicada, porém nem sempre é possível escapar a ele. Quem lê Ana Karenina entende perfeitamente isso. A fidelidade é o ideal dos que se amam, mas é uma sorte. Isso porque o desejo é errático, ele muda de objeto. A infidelidade nos espreita.
Falar de temas que para outras mães seriam tabu não parece ter sido um problema para a senhora. Em relação aos sentimentos, a assumir as suas dificuldades como mãe, houve algum receio? Claro que não foi fácil escrever o livro. Pisei em ovos. Considero que a mãe tem o direito de falar de si. Óbvio que não pode falar da sua vida sexual com o filho e ser licenciosa. Mas pode falar dos seus sentimentos e até se valer disso para ensinar o filho a escutar. O meu livro desculpabiliza a mãe, que é culpada de tudo desde que surgiu o modelo da “boa mãe”. Um modelo que sacralizou a mãe e que exige que ela seja infalível.
No livro, a senhora diz que se apegou excessivamente ao seu filho e se perdeu de vista. Qual a explicação, se há alguma, para o fato de uma mulher tão desbravadora em muitos sentidos, defensora da liberdade individual, ter, como muitas outas, dificuldade em permitir que o filho construa o próprio caminho? Escrevi um livro inteiro para dar conta da pergunta que você me faz. Respondo aqui sumariamente, dizendo que, sem perceber, agi como a minha mãe, que é a típica mãe semita. Como disse mais de uma vez no Consultório Sentimental, o inconsciente faz e fala por nós.
Por quanto tempo a senhora e seu filho ficaram sem se falar e como se deu a reconciliação? Não sei dizer exatamente. A crise durou meses, com idas e vindas. Depois, enquanto eu escrevia a carta, meu filho retomou a análise e voltamos a nos falar. Foi um processo cujo final foi felizmente um happy end. Além da reconciliação, o livro foi bem acolhido.
Simone Costa

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