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quarta-feira, 16 de abril de 2014

Protocolo para a justiça de gênero

Texto de CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. Tradução de Iara Paiva. Publicado originalmente no site do CLAM em 20/03/2014.

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O termo femicídio (ou feminicídio) foi cunhado nos anos 70 pela socióloga, feminista e escritora Diana Russell para discutir o “assassinato misógino das mulheres cometidos por homens”. O termo tornou-se mais comum, no entanto, após a morte inexplicável de mais de 500 mulheres em Ciudad Juarez, no México. Declinação do termo “neutro” homicídio, o neologismo foca a violência letal contra as mulheres e como ela é influenciada pela diferença de gênero. Ciudad Juarez tornou-se emblemática dessa forma extrema de violência, que é uma constante em toda a América Latina e Caribe.

Geralmente, esses crimes permanecem impunes perante a ausência de instrumentos legais e políticas de segurança que respondam às suas características estruturais. Não só esta forma de violência letal está ausente nos códigos, como a falta de consciência e competência dos agentes de justiça e da polícia a torna invisível na prática dos tribunais. A fim de erradicar esta impunidade, desde 2007 diferentes países têm promovido reformas legais que tipificam o femicídio ou feminicídio. No entanto, muitos estados não o especificam em seus códigos penais. Este processo de reforma tem sido realizado utilizando dois métodos: países como El Salvador, Guatemala, Colômbia, Nicarágua, Panamá e Bolívia incluíram tipificações em leis especiais para a prevenção, tratamento e punição da violência contra as mulheres; enquanto Costa Rica, Chile, Peru, Argentina, Honduras e México reformaram leis penais existentes.

Como uma forma de apoiar estes países na implementação de marcos processuais para efetivação prática dessas leis, depois de mais de dois anos de trabalho, consultas e validações, será publicado o Protocolo Modelo Latinoamericano de Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Motivos de Gênero (femicídio/feminicídio). Os responsáveis pelo documento são o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR) e a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), no âmbito da Campanha Secretário-Geral das Nações Unidas “Una-se para acabar com a violência contra as mulheres”, que culmina em 2015.

Para essas organizações, o femicídio/feminicídio geralmente se refere à “morte violenta de mulheres, com base no gênero, se ela ocorre dentro da família, da unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, na comunidade, por parte de qualquer pessoa, ou que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado e seus agentes, por ação ou omissão”. É esta a definição estabelecida na Declaração sobre Femicídio do Comité de Especialistas do Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

A peruana Carmen Rosa Villa, Representante Regional para América Central OHCHR, explica que o “protocolo é um instrumento técnico e prático para fornecer aos sistemas judiciais da América Latina as diretrizes para investigação criminal eficaz sobre as mortes violentas de mulheres por motivo de gênero, de acordo com as obrigações internacionais assumidas pelos Estados.” A idéia de criar este Protocolo, lembrou a especialista, começou há dois anos, em El Salvador, país que registra a taxa de homicídio de mulheres mais alta do mundo. Lá realizou-se uma compilação de recomendações sobre a violência de gênero. Durante este trabalho, o Comitê CEDAW, o Comitê contra a Tortura e o Comitê de Direitos da Criança, mostraram “um padrão” dos relatores sobre a violência que aludia à “falta de resposta da justiça em casos de violência gênero e sua expressão mais extrema: o feminicídio”, chamando a atenção para as deficiências e dificuldades que ainda persistem na investigação de mortes violentas de mulheres. No México, a ONU Mulheres desenvolvia um protocolo para o femicídio, este documento foi adaptado para que fosse aplicado pelo Ministério Público de El Salvador, e hoje é uma política de promotoria do país.

O protocolo do México, junto com outros 17 protocolos de investigação, serviu como antecedente para um rascunho do Protocolo Modelo que incluiu também a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará de 1994, e as sentenças do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos (CIDH). Entre elas, destaca-se o caso de Maria da Penha (Brasil) e o julgamento sobre o Campo de Algodão (México). Ambos enfatizaram que “o inquérito judicial é especialmente relevante no contexto da violência sofrida pelas mulheres, e que o dever de diligência é influenciado por atitudes de discriminação de gênero”.

O caso da brasileira Maria da Penha Fernandes é emblemático. Em maio de 1983, durante seu sono, o marido atirou contra ela. Maria da Penha não morreu, mas ficou paraplégica. Duas semanas depois de deixar o hospital, o marido tentou eletrocutá-la. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos julgou procedente a denúncia contra o Estado Brasileiro por não tomar medidas eficazes para prevenir e punir a violência e pelo “padrão de impunidade que reflete a resposta do judiciário contra esses ataques”. O Tribunal estabeleceu a existência de um padrão geral de tolerância estatal e ineficiência judicial e aplicou, pela primeira vez desde a sua entrada em vigor, a Convenção de Belém do Pará.

Aline Yamamoto, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência do Brasil, lembra que este caso levou à promulgação em 2006 da Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. Ela estabelece sanções penais para atos de violência doméstica e familiar e iniciativas de prevenção. No entanto, não há lei específica que penalize o feminicídio, apesar das 5.000 mortes anuais por esta motivação. Yamamoto explica que embora o número seja muito expressivo e represente 10% do total, está “escondido ” entre os 50.000 homicídios registrados no Brasil. Diz que o debate sobre o feminicídio é recente. O problema, diz a profissional, ocorre quando nesses casos de morte a aplicação da justiça é feita por tribunais diferentes daqueles que foram criados pela lei Maria da Penha. “Tanto a acusação quanto a defesa estão mais preocupadas em investigar a vida emocional das pessoas envolvidas do que em entender a violência de gênero em um contexto cultural machista e sexista”, observa. Explica que muitos juízes não sabem o que é gênero, usam vários estereótipos e culpabilizam as mulheres por suas roupas ou seu comportamento. Neste contexto, o Protocolo Modelo será vital, afima.

Existem dados sobre mortes violentas de mulheres devido ao gênero na América Latina, mas a comparação dos valores entre os países é muito complexa, pois o conceito de femicídio ou feminicídio varia de país para país e descreve realidades distintas. Em alguns países, apenas se considera feminicídio quando a morte violenta de mulheres ocorre em um relacionamento, em outros países, a definição abrange também as mortes que ocorrem em outros contextos. No geral, de acordo com um relatório do Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 2011 foram registrados 1.139 homicídios de mulheres pelo fato de serem mulheres em oito países da região. Em 29,4 % dos casos, a morte foi causada por namorados, ex-namorados, cônjuges, ex-cônjuges ou ex-conviventes, ou seja, aqueles que mantiveram uma relação com as vítimas. O relatório de 2012 da organização Small Arms Survey concluiu que mais de metade dos 25 países com maior incidência de feminicídio estão na América Latina e no Caribe.

A perspectiva de gênero e a insegurança cidadã

Na investigação para elaboração do Protocolo foram identificadas deficiências imperdoáveis, como as relatadas pelo Representante Regional para a América Central OHCHR: relatórios de autópsia deficientes, negligência e irregularidades na coleta e análise de provas, identificação das vítimas e dos agressores. Somando-se aos “estereótipos reproduzidos por aqueles que administram a justiça”, revela, ao invés de esclarecer os fatos, os procedimentos transferem o ônus da prova para a vítima. “É como se a vítima provocasse o acontecido e que tudo, em última análise, fosse resultado de seu mau comportamento”, enfatiza Villa.

Além da permanência de preconceitos e estereótipos na prática de operadores da justiça, o desenvolvimento do Protocolo Modelo notou evidências de atraso no início das investigações, lentidão ou inatividade de registros, condução de investigações por parte das autoridades sem imparcialidade e competência nesta área; pouca credibilidade conferida às reivindicações das vítimas e suas famílias, tratamento inadequado das vítimas e suas famílias quando procuram colaborar na investigação dos fatos, perda de informações, bem como uma participação insuficiente dos representantes das vítimas no processo.

Para muitos investigadores, na América Latina e no Caribe, há uma grande diferença entre o que é institucional, a legalidade e a transferência cultural. Neste contexto, indica Villa, o Protocolo Modelo é uma ferramenta útil para que o investigador compreenda o fenômeno social do feminicídio e assegure uma punição. Quando se consegue isso, gera-se um processo de transformação cultural . Em resumo, o Protocolo Modelo não será para determinar “única e exclusivamente um protocolo para análise forense, ou como médicos, policiais e juízes devem atuar, mas será um elemento substancial que incluirá a perspectiva de gênero a todos os que participem das fases de investigação”, disse o representante do ACNUDH.

Soraya Hoyos, encarregada interina da campanha Una-se para acabar com a violência contra as mulheres, explica que esta ferramenta será útil para os encarregados da investigação de mortes violentas, uma vez que o texto implica a compreensão do feminicídio como “uma consequência da discriminação e desigualdade que ainda existe entre homem e mulher”, e que houve um debate social e cultural sobre qual sociedade se quer construir no século XXI, um período em que “as mulheres são muito mais presentes no vida pública”, disse ela.

Representando a Convenção de Belém do Pará, Patricia Mejía reflete sobre a contribuição do Protocolo Modelo. Na sua opinião, o documento vai ajudar a mudar a “dinâmica de compreensão” dos praticantes de justiça. Explica que, quando o Protocolo Modelo diz que “a morte violenta de mulheres pelo fato de ser mulher”, haverá uma maior compreensão sobre o “componente de ódio” de um crime desta natureza, que é incorporado em um “sistema de valores desiguais e patriarcal”.

Quando um evento assim não é investigado, os especialistas indicam que se transmite para a sociedade que estes comportamentos são permitidos e tolerados. O compromisso com o Modelo Protocolo investe na realização de investigações eficientes, esperando resultados tangíveis, impondo punições e compensando as vítimas. “Queremos instalar um mecanismo para não estimular e incentivar a repetição destes atos e gerar o que se chama no direito penal de prevenção geral”, diz Villa. A especialista destacou que a mensagem é clara: estes comportamentos não são tolerados porque a justiça intervém a tempo e alcança sentenças eficazes para os infratores.

Assim como foram criadas estruturas especializadas para combater crimes graves como terrorismo, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, o Protocolo Modelo quer ser uma contribuição para a criação de instituições na região, um sistema de leis, políticas públicas de controle e proteção dos direitos das mulheres. “Estes eventos estão contribuindo para a insegurança de uma maneira muito forte”, diz Villa. Ela afirma que esta crise na sociedade não se reflete apenas o ladrão, ou crimes econômicos, de propriedade ou lavagem de dinheiro, mas “também implica o crime que prejudica o pleno exercício dos direitos humanos das mulheres” , disse a representante da OHCHR.

Entre as recomendações que podem ser feitas para os Estados na prevenção, investigação, julgamento, punição e reparação das mortes violentas de mulheres devido ao gênero, aparecem: “identificar comportamentos dos agressores”, “verificar presença ou ausência de motivações de gênero”, definir o “grau de responsabilidade dos autores do crime” e “promover a participação das vítimas indiretas ou de suas famílias”. Em particular, se pretende incorporar estruturas políticas abrangentes para prevenir e combater a violência contra as mulheres, criminalizar a morte violenta de mulheres devido ao gênero, alocação de recursos técnicos e financeiros, acesso à serviços voltados às mulheres sobreviventes e suas famílias e a promoção de intervenções preventivas. Também estão incluídos entre os objetivos a formação e a capacitação de funcionárias e funcionários públicos, a coordenação interinstitucional, o monitoramento constante das políticas de prevenção e punição, e o planejamento de sistemas de informação e políticas públicas.

Além disso, o Protocolo Modelo pretende ser uma ferramenta completa para que a partir da legislação nacional se possa também estabelecer um direito comparado, com a legislação de outros países sobre o assunto. Portanto, é um documento “flexível” e adaptável ao contexto nacional, sujeito às instituições, leis e cultura de cada país. Nessa lógica, o texto inclui os procedimentos para o “projeto de investigação”, a ação judicial, “a construção do caso” para a imposição de vítimas diretas e indiretas e “recomendações para a apropriação do protocolo.”

Campanha/estratégia de comunicação

O Protocolo Modelo é um dos resultados mais importantes da campanha “Una-se para acabar com a violência contra as mulheres”, diz Soraya Hoyos, responsável interina da campanha, que o qualifica como uma ferramenta real e uma possibilidade concreta de traduzir os compromissos dos Estados de proteger os direitos das mulheres contra a violência, e levar essa prática a proteção, a vida real das pessoas. Para seus gestores, é uma estratégia para a eliminação da violência contra as mulheres, que visa mobilizar diversos setores envolvidos com a questão. “Conseguiu-se plantar a ideia de que a violência não é um problema das mulheres, é uma questão de homens e mulheres, é uma questão de sociedade e do Estado”, afirma.

Trabalhou-se também com roteiristas e diretores de telenovelas, conta a profissional, para começar a “discutir culturalmente” qual é a ideia da mulher e do homem vendida e transmitida através da mídia e de produtos culturais de massa como são as novelas. “Uma coisa é trabalhar com o Judiciário e o Ministério Público, e a outra é conquistar novos espaços”, diz a encarregada da campanha. Seguindo este raciocínio, na Argentina estão trabalhando com uma rede de salões de beleza e cabeleireiros, e em associação com a MTV América Latina desenvolveu-se uma iniciativa destinada especificamente aos jovens chamada “O corajoso não é violento” que pretende questionar a masculinidade associada à violência.

A revisão do rascunho do Protocolo Modelo incluiu várias categorias de operadores jurídicos, funcionários do Ministério Público, assim como representantes de organizações de direitos humanos e grupos ativos na defesa dos direitos das mulheres. Segundo Soraya Hoyos, o processo deve ser coletivo, como uma “onda expansiva que realmente mude nossa mentalidade” porque os homens também se sentem “presos” em um padrão de masculinidade que não lhes permitem explorar sua individualidade e sua postura coletiva de maneira verdadeira. Você tem que “quebrar as barreiras”, segundo Hoyos, para fazer desta questão uma verdadeira preocupação em todo o mundo e não apenas entre especialistas e pessoas afetadas diretamente por ela. “Assim como o racismo deixou de ser um problema que a sociedade aceita como normal, apesar de vestígios remanescentes, devemos eliminar esta tolerância social para a violência, o Protocolo Modelo e a campanha caminham neste sentido”, afirmou.

O fato é que, com o Protocolo Modelo os problemas de desigualdade de gênero e violência contra as mulheres não serão totalmente resolvidos, nem os agentes de justiça entregarão respostas 100% eficazes. A campanha “Una-se” também não resolverá essa questão. De acordo com Villa, é necessário gerar uma maior consciência e compreensão dos direitos das mulheres; para isso as ONGs deveriam empoderá-las e criar-lhes condições para lutar e denunciar a violência que sofrem. Por outro lado, é necessária a formação de policiais e instituições de acordo com a realidade de cada país, e a aposta é a inclusão da iniciativa privada. “Incluir o setor privado para incentivar e promover oportunidades para a participação de mulheres que sofreram violência, é um desejo ainda pendente”, concluiu Villa.

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