segunda-feira, 13 de abril de 2015

Crianças e a valorização da vida

Promotora de Justiça, escritora e poetisa aborda de forma lúdica o tratamento de câncer infantil em livro e fala sobre a capacidade dos pequenos de enfrentar as adversidades

A promotora de Justiça e escritora, Ariadne Cantú (Foto: divulgação)
A promotora de Justiça e escritora, Ariadne Cantú
(Foto: divulgação)

ISABEL CLEMENTE

12/04/2015

Há sete anos, Ariadne Cantú lançou seu primeiro livro infantil inspirada por frases que marcavam seu trabalho como Promotora da Infância e da Juventude em Campo Grande (MS), e não parou mais. São 16 livros, que vão da poesia à realidade de crianças em tratamento contra o câncer, retratada em dois livros: O planeta dos carecas (2010) e Xampu para carecas (2014).

Eu a entrevistei pela primeira vez no final de 2011 por causa do relançamento de Retalhos de Verdades (Editora Alvorada), seu primeiro livro, com crônicas sobre a vida de crianças que sofreram maus tratos e estavam à espera de uma nova família. Ariadne conseguiu, por telefone então, transmitir todo o entusiasmo que sentia pelo trabalho e seu profundo amor pelas crianças. Percebi que do outro lado da linha, havia alguém especial.

No ano seguinte, um outro livro de Ariadne (Enquanto mamãe não vem) seria o estopim para um projeto mais ousado e profundo: realizar oficinas de arte para que as crianças sem lar e sem família pudessem expressar as emoções desse momento difícil. Os desenhos foram compilados num livro de arte, que ela ajudou a divulgar.

Hoje, Ariadne é procuradora de Justiça. Na segunda instância, não lida mais diretamente com histórias de adoção e perda de guarda familiar. Mãe de três (uma jovem universitária, um adolescente e um menino de 5 anos), Ariadne continua produzindo, estimulada pelos filhos e pela vida ao redor. Seus mais recentes livros, A pipa e a lua – escrita a partir de um passeio com o filho caçula no parque e lindamente ilustrada – e Xampu para carecas, levaram o selo da ONU "Oito jeitos de mudar o mundo", uma honra concedida àqueles cujo trabalho tenha o propósito de contribuir com a humanidade. Nesta coluna, reproduzo uma nova conversa com Ariadne, que com sensibilidade e um olhar atento constrói pontes unindo margens destinadas a não se encontrar.

ÉPOCA – Quando e como começou esse trabalho de se aproximar das crianças em tratamento contra o câncer?

Ariadne Cantú – Essas coisas acontecem meio sem querer. A diretora presidente da Associação de Apoio às Crianças com Câncer (AACC) pediu um material para ajudar as crianças a enfrentar a perda dos cabelos, mas eu me aproximei e vi que a realidade ia muito além da queda do cabelo. Primeiro porque criança nenhuma gosta de ser diferente. Ninguém quer ser diferente. É um momento muito marcante. O Planeta dos Carecas se destina a todas as crianças porque resolvi falar sobre o que é sentir-se diferente, tanto que nesse livro o diferente é o que tem cabelo. O livro ajudou no debate sobre bullying, a conversa cresceu e foi muito bacana. O livro vendeu bastante e doei todos os direitos autorais para famílias sem condições. Então surgiu o grupo interessado em montar uma peça de teatro, foi um encanto.

A promotora de Justiça e escritora, Ariadne Cantú, encontra com crianças em centro de assistência a crianças com câncer (Foto: Divulgação)
A promotora de Justiça e escritora, Ariadne Cantú, encontra
com crianças em centro de assistência a crianças com câncer
(Foto: Divulgação)

ÉPOCA – No livro Xampu para Carecas há referências a personagens e situações reais, poderia contar mais?

Ariadne – Numa dessas visitas à AACC para falar do Planeta dos Carecas, fizemos uma grande roda e pedi que as crianças sentassem perto de mim, mas uma adolescente não quis, então eu perguntei se a gente podia mudar para sentar perto dela. As conversas começaram a evoluir, até que ela se abriu. Contou que, quando o cabelo começou a cair, soube que os cabelos poderiam nascer diferentes. Ela tinha cabelo crespos e queria saber se havia alguma chance de eles renascerem lisos. Ela estava tão convencida que ia nascer liso que pediu para a mãe comprar xampu e condicionador para cabelos lisos porque ela queria usar já. Aquilo era muito simbólico para uma menina numa situação tão crítica. Depois daquele dia ela ainda teve que amputar um braço e ficou tão fragilizada que, aos 14 anos, disse assim "eu vou perder meu bracinho", como se fosse uma criança pequena. Ao mesmo tempo, havia uma demonstração tão grande de coragem porque ela acreditava não só na cura como no cabelo liso. Ela assumiu uma postura de coragem diante da doença e eu transformei essa história no livro Xampu para Carecas, que também conta com outros personagens "reais", como o Dr Marcelo Curatudo, personagem em homenagem a um médico de Campo Grande que se tornou referência em câncer infantil e é muito amado pelas crianças, o Marcelo dos Santos Souza. O menino de cabelo moicano também foi criado por causa de um garoto que não perdeu todos os fios e pediu para raspar com um estilo moicano. E tem ainda uma assistente social que raspou a cabeça para provar para as crianças que cabelo só serve para esquentar a cabeça. A menina do xampu, aliás, está ótima. Mora em Rondônia, namora, é uma mocinha muito linda, mas o cabelo está crespo (risos).

ÉPOCA – As pessoas de maneira geral fogem da tristeza, evitam se confrontar com a dor, por medo, ignorância, e várias outras questões, no entanto, você vai lá, encara tudo com as perdas e as superações. São emoções muito fortes. Qual o balanço que fica?

Ariadne – Eu sempre ganho mais do que dou. É tão pouco o que faço e ganho tão mais. As crianças ficam muito contentes por viverem esse momento de troca porque estão todas no mesmo barco. Riem, dão gargalhadas daquilo que passou, e os pais se juntam.O saldo é esse, apesar da dificuldade do enfrentamento. O que me faz continuar é poder transmitir essa mensagem porque faz outras pessoas perceberem também que a vida delas não é tão ruim e que pode ser leve. O teatro foi muito alegre. Eles transformaram o livro num musical. E a gratidão dos que conseguem se expressar é libertadora.  Eu digo que esses meninos são os verdadeiros meninos-coragem, um presente que a vida me deu. Muitos viraram meus amigos sim. Cada conversa, sorriso, frase vai enchendo essa mochila onde a gente guarda as experiências da vida para um dia voltar a olhar. Quando você intervém na vida de alguém, trazendo um sorriso, um sopro de alegria, a vida ganha outra dimensão. São presentes inesperados.

Musical inspirado no livro "O planeta dos carecas" tratou de forma alegre e lúdica as diferenças, numa referência à realidade das crianças que, em tratamento contra o câncer, perdem os cabelos (Foto: Divulgação)
Musical inspirado no livro "O planeta dos carecas" tratou de forma alegre e lúdica as diferenças, numa referência à realidade das crianças que, em tratamento contra o câncer, perdem os cabelos (Foto: Divulgação)

ÉPOCA – Como crianças enfrentam o risco de morte iminente?

Ariadne – É curioso porque até as crianças que não estão conscientes dos riscos, por serem muito pequenas e não compreenderem tudo, se desenham longe do chão, com pássaros em volta. As crianças que têm que lidar com a possibilidade real de morrer valorizam a vida de uma forma muito diferente dos adultos. São imbatíveis. Teve um menino que disse assim para o médico: "tio, eu tô muito triste porque meu pai vai sentir muita falta de mim e eu quero dar uma televisão para ele não sentir tanta falta". Compraram a TV e ele morreu um pouco depois. É triste demais, eu sei, mas a preocupação dele com a vida que ia seguir, com o pai...

E tem também os pais que heroicamente seguram o sofrimento para poupar os filhos. Um pai me chamou muita atenção. Ele disse que quando os cabelos da filha começaram a cair, prometeu para ela que não ia chorar, mas ele me confessou que chorava todo dia sozinho no trajeto de ida e volta para o trabalho. Eram 30 quilômetros chorando na ida, e 30 quilômetros chorando na volta.

ÉPOCA – De maneira geral, você acha que as crianças encaram a doença com mais leveza do que os adultos?

Ariadne – Não sei se leveza é a palavra, mas elas têm uma coragem que não percebo muito nos adultos. Não sou profunda estudiosa sobre o que é estar na iminência de morte, mas conheci histórias e nelas os adultos estavam sempre muito céticos. A criança não tem esse ceticismo, como o menino que queria comprar TV para o pai. O adulto não tem essa percepção. Ele vai pensar no que queria ter feito e não fez. A criança tem essa grandeza que se sobressai se a gente pensar o quanto elas são vulneráveis e puras. A menina que botava fé no cabelo liso...ela comprou aquela ideia e seguiu adiante. Foi uma barra pesada, mas ela enfrentou.

ÉPOCA – Qual é a reação das crianças ao se verem retratadas nas histórias?

Ariadne – É o máximo, elas se sentem megaimportantes. Todo mundo agora quer protagonizar um livro. É a coisa mais divertida. Sentem-se agradecidos e valorizados. Imagina num público muito maior? Tinha que ver a alegria dos pacientes ao assistirem à peça com um auditório cheio de crianças saudáveis. A peça - Zion, o planeta dos carecas - será reapresentada em Campo Grande e a ideia é levá-la para Brasília e São Paulo.

ÉPOCA – À frente da Promotoria da Infância, você conheceu histórias dramáticas e agora o drama envolve saúde.  O que é mais difícil de encarar, a criança sem família ou a criança doente?

Ariadne –  As crianças sem família. Por mais doloroso que seja conhecer uma criança na iminência da morte, porque morrer é uma possibilidade, a sensação diante de um menino preocupado com o pai é que a vida dele tinha um propósito e que uma missão foi cumprida. De alguma forma, as pessoas encontram sentido para aquela dor e vivem um rito. A criança sem laços é o auge do abandono, como uma mesa sem pé, que não se equilibra, porque a ela falta amor, e amor é tudo.

ÉPOCA – A fantasia ajuda as crianças a enfrentar as adversidades?

Ariadne – Sim, a fantasia dá base para ela se segurar. A criança sem amor não consegue nem desenvolver a fantasia. É muito doloroso ver crianças sem família.

ÉPOCA – Quais as maiores lições dessas histórias?

Ariadne – A melhor pergunta que já me fizeram em entrevista veio de uma criança sem uma das pernas que me questionou por que eu tinha escrito aquele livro, o Planeta dos Carecas. Eu já tinha respondido aquilo tantas vezes, então eu disse de novo que era para dar visibilidade às dificuldades da vida e às diferenças, porque ao perder os cabelos as crianças ficam diferentes, mas ela insistia olhando dentro dos meus olhos: "eu quero saber por quê". E me perguntou se eu tinha alguém na família com câncer, se eu já tinha tido câncer. Só assim eu consegui dar a resposta correta. Eu escrevi por amor. Só isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário