segunda-feira, 13 de abril de 2015

O afeto em xeque e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - Parte 3

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12 de abril de 2015
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Bem, essa orientação foi recentemente repetida pelo STJ (em 19 de fevereiro de 2015):[7]

1. Afigura-se absolutamente estéril a discussão afeta à observância ou não dos princípios da eventualidade e da adstrição, notadamente porque a tese de paternidade socioafetiva, não trazida inicialmente na contestação, mas somente após o exame de DNA, conjugada com a também inédita alegação de que o demandante detinha conhecimento de que não era o pai biológico quando do registro, restou, de certo modo, convalidada no feito. Isso porque o autor da ação pleiteou a emenda da inicial, para o fim de explicitar o pedido de retificação do registro de nascimento do menor, proceder aquiescido pela parte requerida, que, posteriormente, ratificou os termos de sua defesa como um todo desenvolvida no processo.
2.  A controvérsia instaurada no presente recurso especial centra- se em saber se a paternidade registral, em desacordo com a verdade biológica, efetuada e declarada por indivíduo que, na fluência da união estável estabelecida com a genitora da criança, acredita, verdadeiramente, ser o pai biológico desta (incidindo, portanto, em erro), daí estabelecendo vínculo de afetividade durante os primeiros cinco/seis anos de vida do infante, pode ou não ser desconstituída.
2.1. Ao declarante, por ocasião do registro, não se impõe a prova de que é o genitor da criança a ser registrada. O assento de nascimento traz, em si, esta presunção, que somente pode vir a ser ilidida pelo declarante caso este demonstre ter incorrido, seriamente, em vício de consentimento, circunstância, como assinalado, verificada no caso dos autos. Constata-se, por conseguinte, que a simples ausência de convergência entre a paternidade declarada no assento de nascimento e a paternidade biológica, por si, não autoriza a invalidação do registro. Ao marido/companheiro incumbe alegar e comprovar a ocorrência de erro ou falsidade, nos termos dos arts. 1.601 c.c 1.604 do Código Civil. Diversa, entretanto, é a hipótese em que o indivíduo, ciente de que não é o genitor da criança, voluntária e expressamente declara o ser perante o Oficial de Registro das Pessoas Naturais ("adoção à brasileira"), estabelecendo com esta, a partir daí, vínculo da afetividade paterno-filial. A consolidação de tal situação (em que pese antijurídica e, inclusive, tipificada no art. 242, CP), em atenção ao melhor e prioritário interesse da criança, não pode ser modificada pelo pai registral e socioafetivo, afigurando-se irrelevante, nesse caso, a verdade biológica.
Jurisprudência consolidada do STJ.
2.2. A filiação socioativa, da qual a denominada adoção à brasileira consubstancia espécie, detém integral respaldo do ordenamento jurídico nacional, a considerar a incumbência constitucional atribuída ao Estado de proteger toda e qualquer forma de entidade familiar, independentemente de sua origem (art. 227, CF).
2.3. O estabelecimento da filiação socioafetiva perpassa, necessariamente, pela vontade e, mesmo, pela voluntariedade do apontado pai, ao despender afeto, de ser reconhecido como tal. É dizer: as manifestações de afeto e carinho por parte de pessoa próxima à criança somente terão o condão de convolarem-se numa relação de filiação, se, além da caracterização do estado de posse de filho, houver, por parte daquele que despende o afeto, a clara e inequívoca intenção de ser concebido juridicamente como pai ou mãe daquela criança. Portanto, a higidez da vontade e da voluntariedade de ser reconhecido juridicamente como pai, daquele que despende afeto e carinho a outrem, consubstancia pressuposto à configuração de toda e qualquer filiação socioafetiva. Não se concebe, pois, a conformação desta espécie de filiação, quando o apontado pai incorre em qualquer dos vícios de consentimento.
Na hipótese dos autos, a incontroversa relação de afeto estabelecida entre pai e filho registrais (durante os primeiros cinco/seis anos de vida do infante), calcada no vício de consentimento originário, afigurou-se completamente rompida diante da ciência da verdade dos fatos pelo pai registral, há mais de oito anos. E, também em virtude da realidade dos fatos, que passaram a ser de conhecimento do pai registral, o restabelecimento do aludido vínculo, desde então, nos termos deduzidos, mostrou-se absolutamente impossível.
2.4. Sem proceder a qualquer consideração de ordem moral, não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto, igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que, voluntária e conscientemente, o queira. Como assinalado, a filiação sociafetiva pressupõe a vontade e a voluntariedade do apontado pai de ser assim reconhecido juridicamente, circunstância, inequivocamente, ausente na hipótese dos autos.
Registre-se, porque relevante: Encontrar-se-ia, inegavelmente, consolidada a filiação socioafetiva, se o demandante, mesmo após ter obtido ciência da verdade dos fatos, ou seja, de que não é pai biológico do requerido, mantivesse com este, voluntariamente, o vínculo de afetividade, sem o vício que o inquinava.
2.5. Cabe ao marido (ou ao companheiro), e somente a ele, fundado em erro, contestar a paternidade de criança supostamente oriunda da relação estabelecida com a genitora desta, de modo a romper a relação paterno-filial então conformada, deixando-se assente, contudo, a possibilidade de o vínculo de afetividade vir a se sobrepor ao vício, caso, após o pleno conhecimento da verdade dos fatos, seja esta a vontade do consorte/companheiro (hipótese, é certo, que não comportaria posterior alteração).
3. Recurso Especial provido, para julgar procedente a ação negatória de paternidade.”
A questão que surge é a seguinte: a decisão é efetivamente casuística a ponto de impossibilitar a verificação de uma linha de orientação daquele Tribunal ou revela um pensamento consubstanciado na fórmula “homem enganado pode optar por deixar de ser pai”?
Tudo indica que realmente a decisão reflete um pensamento já consolidado pelo STJ. O homem enganado pode sempre optar por não ser pai em termos jurídicos apesar de clara construção de paternidade afetiva.
c) Afeto perplexo
A última linha de orientações do STJ sobre o afeto evidencia uma perplexidade. Trata-se da hipótese de o filho decidir se quer ou não manter o vínculo de afeto. Surge, então, um terceiro elemento: a vontade.
A decisão do STJ, de dezembro de 2012, revela um entendimento que gera perplexidade:
É possível o reconhecimento da paternidade biológica e a anulação do registro de nascimento na hipótese em que pleiteados pelo filho adotado conforme prática conhecida como “adoção à brasileira”. A paternidade biológica traz em si responsabilidades que lhe são intrínsecas e que, somente em situações excepcionais, previstas em lei, podem ser afastadas. O direito da pessoa ao reconhecimento de sua ancestralidade e origem genética insere-se nos atributos da própria personalidade. A prática conhecida como “adoção à brasileira”, ao contrário da adoção legal, não tem a aptidão de romper os vínculos civis entre o filho e os pais biológicos, que devem ser restabelecidos sempre que o filho manifestar o seu desejo de desfazer o liame jurídico advindo do registro ilegalmente levado a efeito, restaurando-se, por conseguinte, todos os consectários legais da paternidade biológica, como os registrais, os patrimoniais e os hereditários. Dessa forma, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos do filho resultantes da filiação biológica, não podendo, nesse sentido, haver equiparação entre a “adoção à brasileira” e a adoção regular. Ademais, embora a “adoção à brasileira”, muitas vezes, não denote torpeza de quem a pratica, pode ela ser instrumental de diversos ilícitos, como os relacionados ao tráfico internacional de crianças, além de poder não refletir o melhor interesse do menor.[8]
Posteriormente, em 2013, a decisão em caso semelhante se repete:
“Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão. “7. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. 8. Ainda que haja a consequência patrimonial advinda do reconhecimento do vínculo jurídico de parentesco, ela não pode ser invocada como argumento para negar o direito do recorrido à sua ancestralidade. Afinal, todo o embasamento relativo à possibilidade de investigação da paternidade, na hipótese, está no valor supremo da dignidade da pessoa humana e no direito do recorrido à sua identidade genética”[9]
Note-se que identidade genética e paternidade são coisas distintas há séculos. Pai adotivo é pai e não ascendente genético. Ascendente genético que doa material para o banco de esperma não é pai, mas é ascendente genético.
Verdade genética é direito de personalidade, paternidade é relação de parentesco. Permitir que o filho opte em buscar a verdade biológica após ter tido um pai socioafetivo é colocar completamente o afeto em cheque[10]negando-lhe os efeitos. É desfazer por vontade de um o que foi criado por vontade de dois. A questão que se colocará é: mas se o filho foi enganado como se pode retirar seu direito a buscar a paternidade biológica? A resposta é não se pode.
Então como resolver a situação? Se por sua exclusiva vontade, quiser o filho  também a verdade biológica em sua certidão de nascimento, que não se desfaça a socioafetiva. Sim, aqui, admito eu a multiparentalidadeexclusivamente por vontade e interesse do filho.
Concluo as presentes linhas afirmando que essa ação só poderá ser movida pelo filho se relativamente capaz, jamais representado por sua mãe, e não desfará os vínculos jurídicos decorrentes da afetividade.
Se assim não for, mantidas as decisões do STJ pela qual o pai enganado pode negar a paternidade de seu filho e o filho pode, conforme sua vontade, buscar a verdade biológica destruindo a afetiva, o afeto estará mais que em cheque e sim totalmente renegado.

[1]Descumprimento do dever de convivência: danos morais por abandono afetivo. A interdisciplina sintoniza o direito de família com o direito à família. In A outra face do Poder Judiciário – Decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Coord. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Belo Horizonte: Del Rey/São Paulo: Escola Paulista de Direito – EPD. 2005
[2] Vide REsp 757.411/MG.
[3]Informativo STJ 496, REsp 1.1.59.242/SP.O TJ/SP já havia admitido esta reparação no ano de 2008.  “Responsabilidade civil. Dano moral. Autor abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e reconhecido como filho somente após propositura de ação judicial. Discriminação em face dos irmãos. Abandono moral e material caracterizados. Abalo psíquico. Indenização devida. Sentença reformada. Recurso provido para este fim. Apelação com revisão 5119034700”, TJ-SP, Rel. Des. CAETANO LAGRASTA, j. 12.8.2008)
[4]REsp 1.003.628/DF
[5]REsp 1.259.460-SP, DJe 29/6/12.
[6] REsp nº 878.954/RS. Rel. Min.  Nancy Andrighi. DJ: 07.05.2007. p. 339.
[7] REsp 1330404/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/02/2015, DJe 19/02/2015.
[8] REsp nº 833.712/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJ: 04.06.2007. REsp nº 1.167.993/RS. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. DJ: 18.12.2012.
[9] REsp 1401719/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/10/2013, DJe 15/10/2013.
[10] Não cabe essa conclusão para a hipótese de crime como sequestro ou rapto de criança. O crime dessa gravidade não permite ao criminoso se valer do vínculo criado, em razão de sua torpeza.
 é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.

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