Nesta época do ano, o telefone da cantora lírica Gabriella di Laccio não para. São convites para concertos e conferências sobre a presença feminina na história da música clássica. Esta gaúcha radicada em Londres, onde começou a carreira em 2003, tornou-se referência no assunto desde que lançou o Donne, uma plataforma para dar visibilidade a compositoras invisíveis ao longo da história.
Nos dois anos de existência, completados neste domingo (8), o projeto cresceu e apareceu. Ainda em 2018, Gabriella foi incluída da lista da BBC como uma das 100 Mulheres mais Inspiradoras e Influentes do Mundo", a única brasileira representada na relação que foi atrás de nomes relevantes em 60 países.
Tudo começou quando ela se deu conta de que o repertório da música clássica era muito mais do que os nomes dos compositores que aprendeu a apreciar e a cantar sem se questionar ao longo da vida. Não por acaso, escolheu o Dia Internacional da Mulher para o anúncio. Hoje, ela implica um pouco com a data.
"Não é que eu comecei a implicar. Acho que é um dia merecido. Mas, sinceramente, só neste ano, eu recebi convite para 27 conferências, não me lembro quantas palestras, pelo menos 25 concertos só aqui em Londres. Fico um pouco dividida sobre o dia. Vou celebrar com muita dedicação, esse domingo, Dia Internacional da Mulher, mas a celebração continua, não é? Inclusive, no projeto, a gente começou esse blog diário, o Donne 365, e todos os dias, desde o primeiro de janeiro até 31 de dezembro, vocês podem ir lá. Tem sempre duas mulheres diferentes que a gente promove na música e muito mais: playlists, que estão sendo feitos com curadoria de jornalistas, musicistas, maestros do mundo todo, CDs da semana. Tudo para a gente prestar atenção e se dar conta do tanto de repertório que existe, ouvir e atingir mais e mais pessoas".
Compositora leva Oscar 2020
A cantora vê melhores perspectivas para as compositoras contemporâneas. E destaca o Oscar de 2020 de melhor composição para uma mulher: a música islandesa Hildur Guðnadóttir. Mas destaca que ainda existe muito desconhecimento e preconceito.
No Donne, Gabriella publica um levantamento que faz da temporada musical das 15 maiores orquestras do mundo citadas pela Gramophone Magazine. Das quase quatro mil obras que seriam apresentadas por estas casas na temporada 2019/2020, apenas 142 eram de compositoras mulheres. Isso significa que 96,4% são peças masculinas. E entre os 1.505 concertos previstos para o período, apenas 123 tinham pelo menos uma composição feminina no repertório: 8,2% do total. Os dados são um pouco melhores do que na temporada anterior, mas o ritmo é muito lento.
"As mudanças poderiam ser muito mais rápidas, já deveriam estar acontecendo. Mas eu acho que, infelizmente, ainda existe preconceito, ainda existe uma certa ignorância, às vezes, de repertório, de conhecimento, de pessoas talvez no meio musical, que estejam em posição de liderança, que não têm conhecimento de toda a riqueza de repertório que foi escrito por mulheres, e isso acaba refletindo nas programações”.
No blog Done 365, Gabriella já listou cerca de 4.000 compositoras desde o período medieval até o contemporâneo.
"Hoje em dia são muitas mais. Me comprometi a arrecadar fundos para arrecadar mais musicas e mulheres. Já gravamos cinco CDs com músicas de mulheres dentro do projeto. É muito importante a gravação de CDs, porque é a forma como essa música pode ir para o Spotify, para o mundo, e assim, mais pessoas podem ter conhecimento e escutar. É muito mais fácil do que ir a um concerto onde vai estar sendo tocada essa música. É muito importante continuar gravando músicas escritas por mulheres”, destaca.
Gabriella afirma que está em contato com cerca de mil compositoras pelo mundo. Elas escrevem quase que diariamente e agradecem o empenho.
"Elas estão presentes ali naquela plataforma. Estão visíveis para que as pessoas possam encontrá-las, porque, o que eu notei é que, por muitos anos, muitas compositoras estavam invisíveis”, afirma.
Canção de ninar de "heroína invisível" de Auschwitz
Neste domingo, Gabriella lança um single em que apresenta uma canção de ninar da judia Ilse Weber, que morreu em Auschwitz. Ela cantava para entreter crianças e idosos no campo de concentração. Não se trata de uma compositora clássica. Mas uma “heroína invisível”, segundo a cantora lírica, cuja história a emocionou. A música ganhou um arranjo da compositora brasileira Catarina Domenici neste novo projeto que as brasileiras decidiram lançar juntas.
A artista também comentou o efeito da epidemia de coronavírus, que já matou milhares pelo mundo, sobre a música clássica, uma vez que, por motivo de segurança, governos regionais e nacionais começam a determinar a suspensão de toda a programação que implique em aglomerações.
"Acho que, infelizmente, o coronavírus já está afetando o meio musical, principalmente na Itália. Eu sou uma pessoa positiva, quero me manter positiva, mas é uma coisa que já é real. Sigo aqui torcendo, como todos nós na Europa e no Brasil, também para que seja encontrada uma vacina, uma solução o quanto antes. Porque realmente existe este medo de que a coisa acabe saindo do controle com muitos concertos e viagens cancelados, que eu acho que é o correto fazer nesse momento”, diz.
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