quarta-feira, 14 de novembro de 2012


Minha noite com a virgem mais famosa do mundo 

Bruno Astuto   

Depois do Sandy e da Nana Gouvêa, o furacão da hora é Catarina Migliorini, a catarinense de 20 anos que ficou famosa em todo o mundo depois de leiloar sua virgindade num site australiano. Segundo o site, um japonês de 53 anos arrematou a virgem por cerca de R$ 1,5 milhão.

Catarina virou tese feminista, criou um alvoroço em escala mundial e se tornou assunto nas principais publicações internacionais. Como não bastasse, foi escalada pela grife TNG para desfilar no Fashion Rio. Assim que publiquei a notícia no site, as redes sociais levantaram a voz para criticar a marca, que cancelou o desfile da moça.

Não foram só as redes sociais. Franquiados e clientes da TNG encheram a caixa de mensagens do diretor da marca, Tito Bessa, com mensagens negativas. Ele não contava que as modelos profissionais e os vips rotineiros da plateia não ficassem lá muito animados de “se misturar” à jovem que vendeu sua virgindade.
Para que serve uma passarela? Para vender roupas e divulgar as marcas. Um desfile reflete também o lifestyle das grifes, ou seja, os códigos que norteiam seu DNA: quem essas empresas desejam vestir e como, o tipo de público que elas representam, que maquiagem, penteado e estilo elas desejam imprimir na próxima estação.

As modelos escolhidas para os casting também devem ter a atitude proposta por esses códigos. O estilista decide se elas terão uma expressão e um andar mais neutros para deixar a roupa como principal protagonista do espetáculo ou se deverão ser mais performáticas para interpretar as mulheres que são o alvo daquela coleção.

Algumas marcas, com viés mais comercial, optam por colocar celebridades na passarela. Desejam importar para as roupas a empatia que o famoso desperta em seus fãs. Sabem que aqueles cliques não vão se restringir às publicações e aos sites especializados em moda; irão direto para a imprensa de celebridades, mais ampla, mais acessada. Ganharão o destaque espontâneo que jamais ganhariam caso não pagassem um grande e caríssimo anúncio.

Catarina — ou Ingrid, seu nome verdadeiro — não se encaixa em nenhum desses quesitos. Não é modelo profissional nem desperta empatia pela sua fama. Se tivesse desfilado, que mulher gostaria de usar sua roupa? Imagino a cena na loja: “Oi, eu gostaria daquele vestido usado pela moça que leiloou a virgindade na Internet”. Ou numa festa, diante de um elogio ao look: “Muito obrigada, essa foi a roupa usada pela moça que leiloou a virgindade na Internet”. Duvide-o dó.

Então vamos à minha noite com Catarina. Ela chegou ao Fashion Rio na quinta-feira às 22h na qualidade de convidada da plateia, já que não poderia mais desfilar. Tinha acabado de desembarcar da Austrália e da Indonésia, onde filmou, durante três meses, parte do documentário que registrará o interesse por sua virgindade e pela de seu companheiro cena, o russo Alex.

O site em que ela se inscreveu quando tinha 18 anos foi criado por um diretor de TV americano. Há dois anos, ele prepara um filme sobre a virgindade e o interesse que ela ainda provoca no mundo. Na página virtual, ele recrutava jovens que desejassem leiloar sua iniciação sexual. Poucos foram os candidatos e candidatas. Uma delas desistiu no meio. Catarina se inscreveu de seu computador numa pequena cidade de Santa Catarina. “Nunca pensei que ele fosse me escolher. Quando ele me enviou um e-mail confirmando o interesse, mal pude acreditar”, disse-me ela, festejando.

Assim que chegou ao Fashion Rio, Catarina foi direto para os bastidores do desfile, onde aguardaria o momento em que se sentaria na plateia. Eu estava lá, com minha equipe do ‘Mais Você’, de Ana Maria Braga, que me havia confiado a missão de entrevistá-la. Conversei com ela longamente, pedi a entrevista, ela negou. Até então, só havia conversado com jornalistas por telefone, não achava que era hora de mostrar a cara na TV. Não estava nervosa, pelo contrário; parecia bem segura.

Quando chegou o momento de se sentar, a segurança foi para o brejo. Dela e da equipe da marca. Ficou combinado que ela só se sentaria quando as luzes da sala estivessem apagadas. Catarina titubeou. E se a vaiassem quando ela entrasse? E se os fotógrafos e jornalistas avançassem sobre ela?

Para descontrair, perguntei a ela se era sua primeira vez numa semana de moda. “Sim”. E quem é seu ídolo na moda? “Costanza Pascolato”, respondeu. Pois é; a moça que leiloou a virgindade não é fã de Gisele, Naomi ou Kate Moss, mas do maior ícone de elegância do país. Quando contei a Costanza o episódio, ela riu e me devolveu: “Então por que você não me apresentou a ela?”. Costanza, positivamente, não existe.

Diante da hesitação de Catarina e da marca, pensei, não sei por quê, em Maria Antonieta subindo ao cadafalso. Num impulso, peguei a jovem pela mão e disse: “Vamos entrar juntos”. E nos sentamos lá, na primeira fila. Ao invés da guilhotina, a sala inteira sacou o celular e começou a fotografar Catarina. O desfile começou. Contratada, ela aplaudiu, disse que adorou as roupas e ainda posou para fotos com algumas pessoas que estavam atrás de nós.

Voltamos para o backstage. Catarina concordou com a entrevista. Citou Nietzche, Victor Hugo, disse que gostava de filosofia. Defendeu as prostitutas, dizendo não saber a diferença entre ela e uma mulher que posa nua para capa de revista por dinheiro ou faz sexo sem afeto para conseguir um cargo melhor. Alegou que topou o leilão para poder viajar o mundo e, em ato de extrema sinceridade, pelo dinheiro. Contou que tem dois irmãos e uma irmã, que a mãe, dona de casa, não concorda, mas aceita sua decisão, e que o pai, arquiteto, segue a mesma linha. No papo, se soltou e não demonstrou a menor culpa ou vergonha por sua atitude. “Sou maior de idade e dona do meu corpo”. Na manhã seguinte, foi ao estúdio gravar conosco e repetiu todo seu credo, firme e serena.

Cheguei até a me questionar se tudo não passava de um grande golpe de marketing para promover o filme do australiano. No intervalo, fui acometido por um arroubo de moralismo e questionei: “Você não acha que vai virar heroína se desistir na hora H e decidir entregar sua virgindade a um homem que você ame?”. E ela: “Não vou desistir”. O ato sexual com o japonês de 53 anos foi adiado por causa do desfile. Agora ela espera um sinal do diretor para continuar as gravações do gran finale. A produção teme que ela seja barrada na imigração de algum país como prostituta. Tudo, inclusive a reação da imprensa e do público, está sendo documentado para ser usado no documentário.

Depois que nossa entrevista foi ao ar, as reações foram múltiplas. A maioria condenava: “dar espaço a uma prostituta, com tantos exemplos de jovens que ganham sua vida honestamente?”, inquiriu um internauta. Não acho que nossa posição diante da vida seja alimentada apenas por bons exemplos. E, bem, essa não foi uma première em minha carreira. Lembro quando entrevistei, não sei quantos anos atrás, Gabriela Leitte, que lançou a grife Daspu, feita por uma cooperativa de prostitutas, e ela me disse que era “puta com muito orgulho, por opção”. Cobri seu primeiro desfile, na Praça Tiradentes, no Rio, com plateia recheada de celebridades. Se tivesse estreado na mídia hoje, Gabriela seria um alvo fácil do escrutínio das redes sociais.

Lembro também o desfile de Yves Saint Laurent de 1971, quando ele colocou na passarela roupas e modelos completamente distantes dos padrões da moral da época. A coleção, intitulada Parisienne, homenageava as parisienses, inclusive as prostitutas de Pigalle e do Bois de Boulogne. Tinha um casaco de vison verde usado por uma modelo completamente nua. O mestre importou, das esquinas de Paris, a moda do meretrício. Foi um escândalo, com direito a protestos nas ruas, críticas ferozes, editoriais agressivos. Yves achou que sua carreira acabaria ali mesmo. A clientela, no entanto, adorou a coleção, que virou um grande sucesso de vendas. Yves virou o que virou.

Jean-Paul Gaultier, vez por outra, coloca uma personagem polêmica em seus desfiles. Prostituta na passarela? Ah, isso ele já fez nos anos 80. Se repetisse a dose, seria até considerado démodé. E Karl Lagerfeld também circulou no ano passado com uma mocinha de reputação duvidosa, a marroquina Zahia Dehar, que ficou famosa na França depois de ter feito programas com jogadores de futebol quando ela era menor de idade. Saint Laurent, Gaultier e Lagerfeld perderam uma única noite de sono por terem virado alvo de polêmica ao eleger musas as moças das esquinas? Logo em seguida, as burguesas saíam freneticamente em busca das roupas desfiladas por elas.

A moda, aquela de verdade, não chegou aonde chegou por ter seguido padrões, mas justamente por tê-los quebrado. É justamente quando ela nos opõe às nossas ideias pré-estabelecidas que se torna relevante e vai muito além de um simples comércio de roupas.

Faltou à TNG brasileira uma motivação que justificasse a presença de Catarina na passarela. A coleção não trazia o universo das prostitutas nem tinha o sexo como tema. Ficou a impressão — verdadeira — de que era marketing por marketing. Não teria sido uma boa ideia distribuir camisinhas para a plateia no final da apresentação?

O que talvez incomode é que Catarina não tem aquela imagem da prostituta clássica de filme noir, rodando a bolsinha na esquina, meia arrastão na perna e subjugada por um cafetão. É garota classe média de cabelos lisos, letrada e conectada na web, que poderia ser minha filha ou a sua, que poderia fazer carreira e ganhar diploma. Essa a sociedade não perdoa, sobretudo quando ela não está pedindo perdão.

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