domingo, 20 de janeiro de 2013


A fragilidade de todos nós

ISABEL CLEMENTE
  
O plano era pegar um cinema depois do trabalho. Uma segunda sem lei é o que um casal em busca de retomar a vida social a dois precisa. Naquele dia, porém, eu não queria mais. Um vazio de vontade se apossou de mim. “Não sei que filme quero ver, não peguei dica com ninguém, nem o horário. Talvez chova”. Eu era um poço de indecisão e indecisão, vocês sabem, é o começo do fim de uma ideia. Não há bons ventos para aqueles que não sabem onde vão.

Naquele dia, eu não queria que ventasse. Vela recolhida, eu era um barco procurando a corrente que me levaria para um só lugar: minha casa.

Há dias em que o inesperado da vida nos deixa pequenos demais. E o único lugar onde me sentiria grande novamente era perto de quem amo, incluindo o marido que perdeu o cinema comigo e pegou outro atalho para casa. Tem hora que as histórias reais se sobrepõem à ficção, principalmente quando elas te lembram que, neste exato momento, tem alguém enfrentando uma barra muito maior do que a tua, fazendo um sacrifício que a vida jamais te exigiu.

Na minha pequenez de pessoa feliz, eu queria apenas abraçar minhas filhas e ficar bem quietinha.

Por isso entrei quase em silêncio, me livrando de sapatos e bolsa rumo à algazarra que vinha do banheiro. Elas estavam no banho. A euforia aumenta com as histórias simultâneas que começam a ser contadas, com vozes que se elevam na tentativa de chamar minha atenção. Quem chega depois da rua é sempre brindado com essa recepção caoticamente deliciosa.

Cabelos ensaboados, crianças peladas, o pai molhado, e eu de fora olhando aquilo. A mais velha pôs-se a fazer palhaçadas. A menor apoiava as mãos no blindex para ver se eu olhava só para ela. Olhei. A mais velha está na fase das palhaçadas pensadas, tiradas inteligentes. A mais nova é das bobeiras involuntárias, nem ela se sabe tão engraçada.

Eu queria reter aquela imagem como cena do filme que eu não fui ver. Sento sobre o tampo da privada para secá-las e vesti-las. A criança na minha frente fala pulando no mesmo lugar. Sorri à toa. Está de bom humor e seus olhos amendoados quase fecham de tanto gargalhar. A janela na boca revela gengivas inchadas com dentes permanentes querendo sair. Um nariz pequeno, incapaz de segurar meus óculos de sol, está cada dia mais perfeito. Os cabelos estão ficando compridos demais. Mas agora eu não penso nem que é preciso apará-los.

Apesar do barulho, elas parecem um filme mudo na minha frente tamanho era o esforço que eu fazia para lembrar de todos os detalhes desse momento daqui a dez, vinte anos, como se fosse ontem. A pequena também fala se mexendo, marcando o ritmo binário de uma valsa desengonçada com um passo para um lado, e o segundo passo para o outro. Faz isso enquanto pensa e busca uma versão própria da história que a irmã acabou de me contar. Ela fala alto. Eu peço para baixar um pouco o tom. Muito clara, ela é ainda um pouco neném. O formato das pernas ainda roliço, tem barriga e aquele jeito descontraído de quem tá nem aí para a própria nudez. E me anuncia: tô pe-la-da. E corre dali. Eu não saio do lugar. Volta, filha. E filha não volta. Só depois quando eu paro de chamar.

Faço cara de quem está conseguindo ouvir as duas ao mesmo tempo. Finjo que minha cabeça acompanha a pulação da mais velha, pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo. Elas riem. Eu também. O sorriso banguela me fisga no meio do caminho. Vou sentir saudades dessa gengiva exposta quando os dentes brotarem. Quando nascerão esses dentes, afinal? Pergunto isso a ela, que levanta os ombros com aquele ar de “eu deveria saber?”, Ri e continua agitada. Estou agitada, estou agitada, ela me avisa, como se eu não soubesse.

O marido molhado passa por mim, suspira, rindo, está cansado, acho que foi melhor não sair, e me beija. A criança que saltava no lugar não consegue enfiar a perna nos shorts.  Enfia a segunda no mesmo buraco de tão distraída. Ops, foi mal.

De madrugada, a caçula irrompe quarto adentro, mais uma vez. Quer dormir na nossa cama. Estamos cansados demais para devolvê-la de primeira. E ela está com medo. Mamãe bêbada de sono deixa, pai cansado não protesta. Ela se deita e cobre até a cabeça com o lençol. Tem monstu, mamãe, e a palma da minha mão no peito dela percebe um coração disparado de medo. Eu a aconchego junto a mim e fico acariciando aquela cabecinha cheia de imaginação dizendo que está tudo bem agora, porque eu estou aqui.  

Enquanto a criança com medo não dorme, eu me perco naquele pequeno abraço e não me importo com o sono que se esvai. Não agora. Naquele instante, uma outra família faz vigília em torno de um pequeno coração que, operado, há de se recuperar totalmente porque nossas crianças até têm medos, mas nos ensinam o tempo todo a sermos fortes.

http://colunas.revistaepoca.globo.com/mulher7por7/2013/01/18/a-fragilidade-de-todos-nos/

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