segunda-feira, 15 de abril de 2013


Como sobrevivi ao vício do meu pai

As pessoas dizem não entender por que eu, “bonita e de boa família”, morando em Beverly Hills, tive bulimia e depressão. Estava tentando salvar meu pai do crack


ISABELLA LEMOS DE MORAES, EM DEPOIMENTO A ANA LUIZA CARDOSO E MARCELA BUSCATO

história pessoal Isabella (Foto: reprodução/Revista ÉPOCA)
Tinha 14 anos quando descobri que meu pai, o empresário João Flávio Lemos de Moraes, fumava crack. Ali, minha infância acabou. Só pensava em como poderia tirá-lo daquela situação. Os especialistas chamam isso de codependência. Eu e toda a minha família – meus avôs paternos, minha mãe, meus três irmãos – sofremos com isso. Você anula sua vida para cuidar da outra pessoa, e é frustrante porque não se pode fazer muito. O codependente também fica problemático. Cada filho adoeceu de alguma maneira. Comecei a desenvolver bulimia aos 12 anos. Aprendi com meu pai o que ele chamava de truque: provocar vômito para não absorver calorias. Ele tinha bulimia desde os 18 anos, e sempre o vi vomitando. Aos 17 anos, fiquei três meses internada para me tratar. Cheguei a pesar 47 quilos, muito pouco para o meu 1,69 metro. Ainda tenho pensamentos obsessivos com magreza, mas consigo me controlar. Aos 33 anos, pedi para ser internada numa clínica psiquiátrica porque achava estar deprimida. As pessoas não entendiam: “Por que você está assim? É bonita, de boa família!”. Sofri preconceito. Não escolhi ter esses problemas.

Minha família é bem-sucedida há três gerações. Meu avô, Wilson Lemos de Moraes, morto em 2011, fundou a Supergasbras, empresa de distribuição de gás de cozinha. Hoje, minha família não é mais a dona. Agora, temos a WLM, a maior representante de veículos Scania da América Latina. Temos fazendas, agronomia, pecuária. Por causa do vício e de outros transtornos psiquiátricos, meu pai torrou milhões. Não sei quantos, mas foram muitos. Hoje, ele está longe das drogas, e a mãe dele o ajuda a administrar seus bens.

O primeiro contato dele com as drogas foi com 31 anos. Havia fundado uma empresa distribuidora de títulos, a Universal, e ficou em evidência. Como sempre foi tímido, começou a usar cocaína para ficar desenvolto. Desde os 10 anos, eu desconfiava que tinha algo errado em casa. Sentia que tinha perdido aquele pai carinhoso. Quase não o via trabalhando, ele vivia trancado no quarto. Até que, aos 14 anos, achei dentro do carro um estojo de maquiagem com cocaína pura. Hoje, as pessoas compram a pedra de crack pronta. Mas, em 1989, cozinhavam a cocaína e fumavam a pedra. Naquela época, morávamos nos Estados Unidos, para onde tínhamos nos mudado em 1983. Um pouco era para fugir de ameaças de sequestro. E era também uma tentativa dos meus avós de manter meu pai afastado das drogas. Mas foi pior.

Entre idas e vindas, moramos 14 anos na Califórnia, em Beverly Hills, conhecida por suas mansões. Foi lá que meu pai conheceu o crack. Ele tinha amizade com muitos artistas de cinema, com o ator e cantor Sammy Davis Jr., o pessoal todo da droga. Meu pai também andava muito com Sylvester Stallone, Julio Iglesias e Alain Delon, mas não sei se eles se drogavam. 

SUPERAÇÃO Isabella Lemos de Moraes, no apartamento do pai, João Flávio, em Copacabana. “Amo meu pai mais do que tudo, mas também preciso cuidar de mim”   (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)
SUPERAÇÃO

Isabella Lemos de Moraes, no apartamento do pai, 

João Flávio, em Copacabana. “Amo meu pai mais 

do que tudo, mas também preciso cuidar de mim” 

(Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)
A gente sempre passava as férias no Brasil, e às vezes meu pai esticava o período aqui. Eu e meus irmãos perdíamos aula. Meus pais nos deram muito amor, mas nunca limites. Tínhamos um ônibus casa, com dois quartos, sala, micro-ondas, televisão. Fazíamos muitas viagens a Brasília, para as fazendas. Ficávamos naquele mundo de fantasia. No Rio de Janeiro, tínhamos um barco ancorado no Iate Clube. Saíamos para o mar junto com o Lady Laura, de Roberto Carlos, padrinho do meu irmão. Parávamos os barcos lado a lado e ficávamos mergulhando.

Meu pai e Roberto Carlos se conheceram antes de ele ser famoso. Ele ficava em nossa fazenda em Itaipava, onde escrevia músicas. Quando morávamos nos Estados Unidos, fazia muitos shows lá. Roberto sabia do vício do meu pai e sempre tentou ajudar. Inclusive escreveu para ele a música “O careta” (talvez você ache uma droga essas coisas que eu falo/Mas certas verdades nem sempre são fáceis de ouvir/Não custa pensar no que eu digo/Eu só quero ser seu amigo/Mas pense no grande barato de ser um careta). Roberto acabou se afastando porque era uma pessoa pública. Não podia andar com meu pai, principalmente porque o comportamento dele piorou. Ele começou a ter alucinações. A droga potencializou outros distúrbios psiquiátricos. Meu pai achava que falava com Elvis Presley, o ídolo americano morto em 1977. Ele dizia perceber nas músicas frases como “God gave João Flávio daughter”.

Numa de suas crises de paranoia lá nos EUA, meu pai cismou que minha mãe tinha fugido com meus irmãos. Dizia que iria matá-la quando a encontrasse. Como nessa época eu já estava morando sozinha – tinha saído de casa aos 16 anos, porque não suportava ver meu pai levar suas amantes –, ele achou que minha mãe estava escondida lá. Arrombou a porta e encostou o revólver em minha barriga. Eu sabia que aquela explosão de raiva tinha um limite. Não queria acreditar que ele fosse capaz de algo tão violento com a própria filha. Eu e meus irmãos crescemos acostumados com ele armado pela casa. Tínhamos medo de ele nos machucar sem querer.

Aos 17 anos, eu não aguentava mais aquele estresse todo nos EUA e voltei para o Brasil. O resto da família ficou nos EUA, e um dia minha mãe descobriu que minha irmã, então com 13 anos, estava usando drogas com meu pai. Ele ficou com medo de que ela exigisse a guarda dos filhos e resolveu fugir. Saiu de casa num Rolls-Royce cheio de drogas levando meus três irmãos. Viajou sem rumo pela Califórnia por 14 dias. Minha mãe havia dado queixa, e ele foi preso quando o carro quebrou. Ele ficou pouco tempo preso, porque foi considerado um dependente químico, não traficante. Meus irmãos ficaram sob tutela do Estado americano por 15 dias, até nossa mãe conseguir provar que era seguro eles ficarem sob a responsabilidade dela.

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história pessoal Isabella (Foto: Arq. pessoal)
Meu pai parou de usar drogas há cinco anos, depois de 25 anos. Foi quando ele realmente percebeu que tinha perdido a família e resolveu mudar. Hoje, ele está com 62 anos. Minha mãe se casou há dez anos com um cara superlegal, está feliz. Moro num apartamento com meu filho de 17 anos, do namorado que conheci aos 19 na clínica para tratar a bulimia. Minha família me deu o apartamento em 2006 e me ajuda ainda, mas eu controlo minha vida. Por muito tempo, morei com meu filho no apartamento do meu pai. Vivia com medo de que o menino, então com 6 anos, sofresse o que eu sofri e se tornasse uma pessoa insegura como fui, com problemas de identidade e medos. Parti para o ataque, escrevendo cartas para vovó e mamãe, telefonando todos os dias, implorando que me dessem uma condição de sair dali. Minha avó finalmente comprou um apartamento em meu nome. Consegui minha independência e passei a ter noção do que era ter uma vida real, com limites, compromissos, responsabilidades. Foi como acordar para a realidade.

Acordei ainda mais quando comecei a fazer psicanálise, há quatro anos. Minha avó não queria, porque não tinha noção de quanto a história de meu pai fizera mal aos netos. Achava que tínhamos de ajudar meu pai, não a nós mesmos. No desespero, ameacei: se não me ajudasse a pagar, iria aos jornais dizer tudo o que passei. Comecei a fazer psicanálise cinco vezes por semana. Finalmente, pensava em mim. Só recentemente passei a prestar atenção a minha cor preferida, ao barzinho aonde eu gosto de ir, livros, discos e decoração da casa. Eu não sabia nada do meu gosto pessoal. Se a empregada perguntava o que meus irmãos queriam comer, eu explicava minuciosamente. Se perguntavam sobre mim, não sabia direito.

Nunca gostei de depender dos outros. Trabalhei muito como modelo, período em que conheci meu ex-marido, Eduardo Rodrigues, com quem fui casada por cinco anos. Entrei para a faculdade, cursei quatro anos de Direito, dois de moda. Eu seria uma ótima advogada, mas não consegui levar para a frente. Tive de parar tudo e cuidar de mim. Agora, quero terminar a faculdade de jornalismo e fazer pós em psicanálise. Penso em criar uma clínica para dependentes químicos. Só consigo ver meu pai umas duas vezes por semana para não me envolver na vida dele de novo. Não que eu não queira, mas não posso. Amo meu pai mais do que tudo, ele é meu amor. Mas também preciso cuidar de mim.  

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