quarta-feira, 17 de abril de 2013


Mulheres interrompidas

ISABEL CLEMENTE 

Uma menina de calcinha, cabelos molhados e olhar sapeca está escondida embaixo da minha mesa, sentada aos meus pés. Fixo o olhar em seu sorriso branco, de dentes pequenos e espaçados. Sinto cheiro de xampu infantil. Ela foge do pai, que neste momento encarna um pirata malvado disposto a trocá-la por moedas de ouro. Ouço uma gargalhada que escapole baixinha. Digo que não sei de menina nenhuma, nunca vi menor nem mais engraçadinha.  O pirata insiste. Sente fedor de criança cheirosa, diz com voz gutural de pirata malvado. Outra gargalhada debaixo da mesa. Eu olho para ela e boto o indicador na frente dos lábios. Ela repete meu gesto, sempre rindo, nada silenciosa.
Penso que nunca tenho paz para escrever. Nem meia hora, sem que alguém invada correndo o lugar onde estou, fale comigo, me peça qualquer coisa. Mamãe…
Tem hora que isso me irrita. Tem hora que isso me encanta. Quinze minutos antes da perseguição-pirata chegar à ilha-mamãe, tinha vindo a filha maior, chateada porque não conseguia enrolar a toalha no próprio cabelo, depois do banho, como eu faço.
“Mas eu não uso uma toalha tão grande. Pega uma menor”
“Eu queeeero essa“, ela diz, quase miando.
Tento uma vez, duas, digo um tanto impaciente para ela abaixar a cabeça como quem espia o próprio joelho. Ela abaixa demais e a toalha despenca.
“Levanta. Assim não“
Tento de novo. A toalha fica muito para trás, puxando os cabelos dela e desequilibrando seu corpo pequeno e magro. Ela reclama. Eu tiro, tento de novo. Digo, abaixa. Ela se curva demais novamente, mas quase encosta o topo da cabeça no chão, cabelos limpos e cheirosos esparramados no piso. Adoro esse perfume infantil. Noto que ela está de palhaçada e jogo a toalha inteira cobrindo seu corpo e desisto.
“Vai, ô patetinha, some daqui e me deixa escrever…“
Ela fica sentada no chão, rindo de bobeira, coberta pela toalha.
“Vai, filha, deixa mamãe escrever um pouco, só um pouquinho antes do almoço, por favoooor…”, digo, quase implorando.
Eu peço “me deixa“. Nem sempre consigo que me deixem. Uma hora elas voltam. Como o rebanho que, adestrado, retorna ao estábulo para dormir sem o pastor para guiar.
Eu não fico sentada muito tempo lendo jornal. Leio livros parando antes do fim de um capítulo e tento lembrar o parágrafo no qual eu estava. Eu leio no metrô e tomando chá de cadeira de algum entrevistado.
Em casa, quase não falo ao telefone (até porque uso demais no trabalho). TV, só quando elas estão dormindo. Eu não janto ou tomo café sem levantar da mesa umas quatro vezes pelo menos. Nem assisto a um filme de um fôlego só. Já aconteceu de eu e meu marido terminarmos de ver um filme em três sessões de 40 minutos durante três dias seguidos. Sim, foi uma exceção, um exagero, apenas para confirmar a regra. Essa não é minha vida de segunda à sexta, é todo dia porque, nos fins de semana, não existe intervalo entre café da manhã e almoço, almoço e lanche, lanche e jantar. A impressão é que o lanche vai interromper o almoço e que a única solução seria usar tudo descartável (e reciclável, e sustentável…) para não gastar o mínimo espaço de tempo entre tudo isso lavando a louça. Esqueci de falar dos banhos, dos passeios, das brincadeiras e das inevitáveis idas ao mercado e à feira. Tudo se encadeia sem descanso, mas com muitas interrupções.
É raro eu tomar um banho com calma. Até o sono está sujeito a interrupções. E quando tudo emana paz, uma febre interrompe a rotina, e eu sigo assim, mulher interrompida, obrigada a resgatar o fio da meada, a retomar o que quer que seja do meio do caminho, a desenvolver uma ideia com princípio, meio e fim por mais pausas que o raciocínio dê.
Mas não sou a única. Meu marido sente-se da mesma maneira e, provavelmente, você que chegou até aqui no texto e pensou em algum momento “essa pessoa sou eu!”.
Somos uma legião de homens e mulheres interrompidos pelos filhos. Há de ter jogo de cintura (e muito bom humor) para lidar com (tantas) interrupções.
Enlouquecedor? Pode ser, mas eu tenho outra teoria. Nada científica. Desconfio que, diante de tanta dificuldade, o cérebro tenha desenvolvido um modus operandi veloz para contornar as dificuldades e completar as sinapses antes da próxima interrupção. De acordo com inúmeros estudos, os neurônios captam as necessidades do organismo para responder a um determinado estímulo ou produzir certa atividade. As células neurais se comunicam e produzem impulsos elétricos, o que nos permite agir e responder ao meio ambiente.
Sendo assim, eu imagino que, dentro da nossa cabecinha interrompida, haja um alerta vermelho e sonoro indicando “pessoa sujeita a interrupções imprevisíveis”. Daí uma válvula de emergência é constantemente acionada para que a gente responda de pronto ao joguinho do “pensa rápido!”
Se a gente não ficar um pouco biruta, ganha em rapidez e esperteza.
Disclaim: isso não significa que a gente não deva investir num momento solidão a um ou a dois, dar um “chega-pra-lá” no filho, ensiná-lo as regras da boa educação, todo dia, toda hora até o blabláblá surtir efeito. Não se desespere. Eu não trocaria aquele cheirinho perfumado aos meus pés e nenhuma daquelas crianças nem por bilhões de moedas de ouro.

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