quarta-feira, 8 de maio de 2013


O mar de emoções

Você e eu vivemos nele, por isso temos de aprender a navegar


IVAN MARTINS

IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
Um comentário azedo é capaz de estragar uma tarde de sábado. Uma resposta ríspida, logo cedo, coloca um dia inteiro na direção errada. O sentimento de incompreensão nos lança em isolamento a 100 metros do outro, ainda que sentados no mesmo sofá. Às vezes é algo que ela falou, às vezes é a maneira como ele disse. De alguma forma, produz-se a fagulha que inicia uma briga ou cria o distanciamento - e, dado o primeiro passo, somos incapazes de voltar atrás. Quem nos salva de nós mesmos se estamos mergulhados em nossas mais sombrias emoções?   
Algumas vezes, tenho a impressão de que os sentimentos controlam a totalidade nossa existência. A sua, a minha e a de todos os demais. Nessas ocasiões, a racionalidade me parece uma camada muito fina do que nos faz humanos. Sob a película da lógica e das palavras, move-se dentro de nós um mar de emoções que nos comanda - e, a despeito de nós mesmos, elege as nossas disputas e define as nossas afinidades. 
Pense nos casais que você conhece: as pessoas se atraem por razões insondáveis, se juntam por motivos que não conseguem explicar e se querem, ou deixam de se querer, sem que saibam por quê. Para a maioria de nós, na maior parte do tempo, as causas das nossas afinidades são misteriosas. 
No início da paixão, ou próximo do seu desfecho, forma-se uma corrente de sentimentos que lembra a volta de uma onda - ela nos arrasta numa única direção, de forma assustadora. Está em nosso poder recusar ou se render a esse empuxo, mas é impossível negá-lo. Ou inventá-lo, se não existe. 
Entre o início glorioso e o final vale de lágrimas, nos cabe conviver no dia-a-dia das nossas emoções. As minhas, as suas, a dela. Não é fácil. A gente conversa, combina, acerta, discute, promete e, logo adiante, se contradiz, levado por sentimentos mais fortes do que nós.   
Penso em coisas singelas, como deixar-se levar pela irritação ou pela impaciência, mesmo sabendo que não deveria. Penso no ato de despejar sobre o outro os nossos medos e necessidades. Penso na nossa teimosia, nas nossas explosões infantis de frustração, na imensa preguiça que assoma e nos paralisa, no egoísmo diário, mesquinho, ridículo, arraigado, que nos impede de estender a mão. Na ira. Penso no ato de sabotar a vida com doses miúdas de autocomiseração e autocomplacência. 
Penso, sobretudo, no gosto de muitos de nós por chafurdar em sentimentos ruins. 
Vocês já perceberam isso? Certas emoções embriagam. A raiva, a pena de si mesmo, o pessimismo... Uma vez que a gente embarque nesses estados de espírito, eles nos encarceram num círculo de irracionalidade. Somos tomados pelo prazer de sofrer e antecipar o pior. Praticamente desejamos o apocalipse emocional e o extermínio dos nossos afetos. Essa catarse é tão poderosa que, enquanto ela dura, nos impede de pensar de uma forma que não seja exaltada e destrutiva. Autodestrutiva, em geral. 
Sabem do que estou falando, não? Acontece em brigas de adolescentes e de gente madura. Alguém está inseguro, entra em surto e parece imune à razão, determinado a chutar o pau da barraca a qualquer custo. Penso em quantos milhões de pessoas não tomaram decisões estúpidas no meio de um furacão emocional dessa natureza. 
Acho que por trás das relações duradouras o que existe é um cenário totalmente contrário ao dessas crises. Por falta de um nome, vamos chamar esse fenômeno de compreensão profunda. Ela acontece nos casais montados sobre uma base de entendimento não racional. Não é apenas atração que os liga, não é apenas desejo. Muito menos são as concordâncias ideológicas ou intelectuais. Ocorre entre eles uma conexão silenciosa de personalidades que produz ao mesmo tempo conforto e intensidade. Aquilo que a gente chama de amor talvez seja apenas esse encontro fortuito de subjetividades. 
De alguma forma, minhas emoções profundas se comunicam com as suas emoções. Isso torna a vida mais fácil e ao mesmo tempo mais intensa. Por alguma razão, você tem um atalho que chega até mim. Nossos sentimentos conversam, por isso as trocas racionais ficam mais fáceis. Elas acontecem sobre uma base de compreensão afetiva, muito mais efetiva do que a outra. Arranjos racionais são frágeis, enquanto os emocionais são difíceis de quebrar - mesmo quando lógica compele a isso. 
Alguém pode chamar isso de amor, eu chamo de sorte. Chamo também de acerto e trabalho. A gente tem de estar pronto para uma coisa dessas. Tem de perceber quando ela acontece. Uns chegam a essa compreensão precocemente e por si mesmos. Outros precisam de análise e de tempo. Ralando. Muitos nem sabem que existe e nunca alcançarão a sintonia que permite navegar sem bússola o mar das nossas emoções. Azar deles - porque o mar existe, e nele naufragam boa parte dos relacionamentos. 

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