domingo, 16 de junho de 2013

A voz ou o barulhar dos filhos

De uma hora para outra, chiados, vogais e miados que pareciam um fenômeno coletivo dos seres pequenos adquirem uma personalidade. Nasce assim uma inconfundível voz no meio do caos


ISABEL CLEMENTE

Isabel Clemente é editora de ÉPOCA na sucursal do Rio. Há 19 anos tem escrito sobre temas econômicos e sociais que compõem os desafios da história recente do país. Aos domingos, escreverá sobre família e a divertida e desafiante missão de ser mãe (Foto: Rodrigo Schmidt/ÉPOCA)
Se eu disser que começou na maternidade, estaria mentindo. Naquele tempo, qualquer choro só podia ser da minha filha. Se meus ouvidos captassem um bebê chorando na China – em chinês –, eu acreditaria tratar-se da minha filha. A gente passa um tempo achando que todo “unhé“ é do nosso bebê precisando mamar. São pequenos sons universais que custamos a distinguir quando o primeiro filho chega. Eles, os bebês, parecem vir de fábrica com a mesma voz. Essa sensação, pelo que me lembro, dura pouco tempo.
De uma hora para outra, chiados, vogais e miados que pareciam um fenômeno coletivo dos seres pequenos adquirem uma personalidade: a do nosso filho. Nasce assim uma inconfundível voz no meio do caos. Ninguém barulha como o filho da gente.
Do início do corredor, sou capaz de distinguir em segundos se duas meninas falando carregam meu DNA, em meio ao som de nove crianças que moram no nosso andar. Você leu certo. Nove. Isso porque tem dois apartamentos vazios. É muita voz infantil ressoando pelo corredor. Tá bom, às vezes empino as orelhas como um doberman, e relaxo quando a gritaria não vem do meu apartamento.
A voz dos nossos filhos vem dotada com algum dispositivo ligado por Wi Fi aos nossos neurônios. Ela trafega por uma banda larguíssima e exclusiva. Entra ouvido adentro e dá uma nova dimensão à audição.
Na madrugada, a voz nos desperta para uma situação de emergência. Filho gritando “mamãe“ no meio da noite soa como sirene de bombeiro pra mim. Levanto coração disparado pronta para apagar um incêndio, ainda que o fogo esteja no pesadelo de uma delas. Tem noites que a voz escapole fraca. Ela é apenas um murmúrio intraduzível de sonho. Mas bastam poucos decibéis. A criança continua dormindo, enquanto a mãe pisca no escuro tentando resolver seu dilema. Levanto ou não?
A voz dos filhos tem o poder de arrancar os pais de onde estão – inclusive do sono profundo – para transportá-los para onde quer que estejam. Um único sentido aciona os demais. Eu apenas a ouço, mas posso enxergar de onde estiver um par de olhos titubeantes que só desviam dos meus quando saem à procura do que dizer. Vejo um corpo em movimento, que ora se aproxima ora se afasta de mim enquanto fala, precavendo-se contra essa mania que a gente tem de abraçar no meio do nada quando a cena é muito fofa. Quase posso tocá-la, sentir seu cheiro. Ouço o suspiro do outro lado da linha pontuando o diálogo e alongando mais do que deveria a saudação inicial enquanto pensa.  

“Mamãeee???“
“Sim?“
“(Suspiro...) Mamãe (respira), você tá chegando?“
Às vezes não estou chegando, mas fico com vontade de chegar logo. É a voz me sugando pra perto dela. Sozinha, sem moldura e sem imagem, a voz que penetra meus ouvidos é frágil, ondas sonoras solitárias ao vento.
Estou no metrô. Toca meu celular. É a filha mais velha.

- Mamãe....?
- Oi filha.
- Mamãe....você tá chegando agora?
- Estou, querida.
- Mamãe....quando você chegar, a gente pode assistir a um filme?
- Pode ser. A gente vê um filme sim.

- Mamãe (suspiro), então você já tá bem perto de casa?
- Sim...
- Eu e a Carol estamos brincando de uma coisa muito engraçada.
- Quero ver.
- Mamãe...ela quer falar. Espera.
Do outro lado da linha, o tom diminui uma oitava. Mais fina, menos elaborada, tem mais silêncios entre palavras que ainda saem errado. Engraçado. Me faz sorrir de novo. Nossa conversa termina abruptamente. Ela esquece de dizer tchau. A diferença delas é de quase quatro anos. Mas a verdade é que a menor – que já fala pelos cotovelos – vem preenchendo cada vez com mais desenvoltura as lacunas do próprio discurso. Algo mudou. Será a voz? A gente não percebe. É algo que não se pode registrar como a queda de um dente no livro dos grandes acontecimentos da infância. Alguém registra quando a voz dos filhos mudou?
Hoje, 15 de junho de 2013, a voz da caçula amanheceu diferente, com mais firmeza, o timbre andou uma casa decimal rumo a uma nova fase da infância. 
De novo, seria mentira. Eu não sei quando isso aconteceu. É sutil demais.
Mal consigo definir a voz das crianças hoje. Talvez meiga, doce e delicada, mas forte demais para despertar meus instintos.
Mim, protetora, elas, neném. Mãe primata a caminho de casa.
Quando chegar, vou ouvi-las com atenção. Preciso perceber detalhes dessas vozes antes que elas mudem. A laringe fará seu trabalho, os hormônios também. Como me soarão, no futuro, minhas filhas? Firmes, decididas, ainda vulneráveis? Essas vozes hoje são finas, doces e delicadas. Amo muito isso. E quero abraçá-las e guardar no fundo da memória essas vozes.
Mas a bolha de sabão na qual eu flutuava estourou e eu caí no chão, na porta da minha casa, de onde ecoavam berros de duas meninas em fúria disputando alguma coisa e um pai dando bronca.
O fundo musical desandou, o tacape sumiu das minhas mãos, e as chaves também, dentro da bolsa.
Mereço chegar em casa com um barulho desses? Volto pro metrô até que tudo se acalme?
Do que eu estava falando mesmo?  

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