sábado, 8 de junho de 2013

Os bilionários e a fila indecente

Como o urologista Miguel Srougi convenceu donos de grandes fortunas a melhorar a vida de quem usa o SUS


CRISTIANE SEGATTO

CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)
CRISTIANE SEGATTO Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Entre em contato: 
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Não é preciso ir muito longe para ter uma amostra das injustiças que caracterizam o sistema de saúde brasileiro. Basta caminhar pelos arredores do Hospital das Clínicas, a poucos quilômetros da Avenida Paulista, o coração financeiro da cidade. Milhares de doentes e familiares vêm de longe (da periferia, de outras cidades, de outros estados) em busca de algo que se tornou um privilégio: uma consulta com um especialista, um exame, uma cirurgia.

A multidão chega como pode – de metrô, de ônibus, em vans improvisadas, em ambulâncias despedaçadas com placa de cidades distantes. Chega de longe e chega com fome. Quem pode compra um café com leite de garrafa térmica ou um pedaço de bolo caseiro oferecido pelos ambulantes. As calçadas ficam tomadas de doentes que se arrastam em muletas ou cadeiras de rodas, gente que pede esmola, gente que perdeu a esperança.

Entra governo e sai governo e a cena não muda. Na quarta-feira (5), um movimento estranho quebrou a rotina. Uma revoada de carros importados e seguranças particulares ocuparam o pátio em frente ao Instituto Central, do Hospital das Clínicas. Os donos de algumas das maiores fortunas do país se encontraram para a inauguração de uma ala do departamento de urologia. Destinada exclusivamente a mulheres e crianças atendidas pelo SUS, o setor foi reformado e equipado com R$ 13 milhões doados pela iniciativa privada.

Quem pediu dinheiro aos empresários para melhorar a vida de quem depende do SUS foi o urologista Miguel Srougi, professor titular da Faculdade de Medicina da USP. No consultório particular, ele cuida da saúde da maioria dos 19 beneméritos, entre eles Lázaro de Mello Brandão (Bradesco), Joseph e Moise Safra, Aloysio Faria (Banco Alfa), Fabio Ermirio de Moraes (Grupo Votorantim), Rubens Ometto Silveira Mello (Cosan), Eduardo de Souza Ramos (Mitsubishi Motors), entre outros.

Na cerimônia, Souza Ramos falou em nome dos beneméritos. Recentemente, ele enfrentou a tensão de descobrir um tumor – que mais tarde se revelaria benigno. “Se ficamos assustados quando ligamos para o médico e ele não atende o celular, imagine o que as pessoas sentem quando percebem que não terão atendimento porque a fila não anda”, disse.

Corredor e brinquedoteca da nova ala feminina e pediátrica do departamento de urologia do Hospital das Clínicas, em São Paulo.  (Foto: Divulgação)
Corredor e brinquedoteca da nova ala feminina e pediátrica do departamento
de urologia do Hospital das Clínicas, em São Paulo. (Foto: Divulgação)
Não é a primeira vez que Miguel Srougi pede doações aos pacientes para melhorar serviços públicos. Desde 1998, ele usou esse expediente para reformar alojamentos de estudantes de medicina, reconstruir alas de hospitais, pintar escola pública etc. Em 2012, ele foi eleito por ÉPOCA como uma das 100 personalidades mais influentes do ano. Ao final da cerimônia, conversamos sobre saúde pública, governo Dilma, a polêmica da importação de médicos, entre outros assuntos.A ala está sendo considerada uma das mais avançadas dentro da rede pública brasileira. As salas cirúrgicas estão equipadas com mesas acopladas a aparelhos de raios-X, microscópicos cirúrgicos, aparelhos de radiofrequência para destruição de tumores e crioterapia. Há também lasers para tratamento de cálculos e instrumentos, como o bisturi, que podem ser acionados por comando de voz. Além de instalações para cirurgia robótica e simuladores para o treinamento dos novos cirurgiões. O setor infantil recebeu decoração de animais dos diferentes continentes e uma brinquedoteca completa – equipada até com navio pirata.

ÉPOCA – Por que o sr. diz que o médico é um privilegiado?
Miguel Srougi – Somos privilegiados pelas relações que podemos construir. A relação médico-paciente é uma das mais fortes que existem. Mais forte que ela, só as relações familiares. O paciente vem ao consultório e abre seu coração, conta os segredos mais íntimos. Criamos um vínculo. Quando o paciente se sente bem atendido, ele passa a ver o médico com um simbolismo sem paralelo. Para essa pessoa, o médico se torna quase um Deus.

ÉPOCA – O problema é quando o médico acredita mesmo que é Deus, não é?
Srougi – São dois problemas: um deles é o médico achar que é Deus. O outro problema é o médico não perceber que pode usar essa relação privilegiada para ser feliz.

ÉPOCA – Como assim?
Srougi – Ações como essa que estamos inaugurando são inebriantes para mim. Elas me conduzem a uma extrema felicidade. Usufruo dessa felicidade. Faço essas coisas para ser feliz. É um pouco de egoísmo.

ÉPOCA – Que estratégia o sr. usou para reunir essas doações? Ligou para os empresários e simplesmente pediu dinheiro?
Srougi – Preparamos um calhamaço com detalhes do projeto (orçamentos, objetivos etc.) e enviamos para cada um deles. Quando telefonei para avisar que receberiam o material, muitos disseram que fariam doações sem sequer olhar o projeto. Visitei pessoalmente apenas dois dos beneméritos porque eram empresários com os quais minha relação não era muito próxima. No total, reunimos R$ 13 milhões.

ÉPOCA – Eles podem abater as doações do imposto de renda? Funciona mais ou menos como a Lei Rouanet?
Srougi – Alguns abatem. Outros não abatem porque as doações que eles fazem a vários projetos (não só aos nossos) superam o limite que pode ser abatido legalmente. É fundamental que os mais privilegiados se mobilizem e tentem melhorar o seu microentorno. Se cada um fizer o que está ao seu alcance, teremos um país melhor.

ÉPOCA – No Exterior, donos de grandes fortunas costumam fazer doações expressivas. Por que não temos essa tradição no Brasil?
Srougi – Na Europa e nos Estados Unidos, muitas personalidades são modelos de comportamento. O Brasil tem carência desses modelos. Aqui todo mundo quer levar vantagem. A sociedade é condescendente com desvios. Nessa minha experiência, observo que muitos empresários querem fazer doações. Muitos se sentem honrados por poder retribuir à sociedade os privilégios que tiveram.

ÉPOCA – Eles poderiam doar mais do que doam hoje?
Srougi – Muita gente pede dinheiro aos empresários. Percebo que eles não doam quando percebem que o intuito dos projetos é tirar algum proveito próprio. Essas ações só dão certo se forem baseadas na credibilidade.

ÉPOCA – A desigualdade social brasileira se expressa de forma clara nas dificuldades de acesso ao sistema de saúde. Por que os governos falham?
Srougi – Temos dois Brasis. Um Brasil instruído que usufrui de todos os privilégios e o outro Brasil. Sozinhos, os governos não têm condição de aliviar a desigualdade social. A presidente Dilma era bem intencionada, mas o governo está piorando cada vez mais. A saúde é uma tragédia. A educação é uma tragédia. As escolas estão desaparelhadas. A infraestrutura do Brasil arrebentou. As exportações caíram. O PIB está caindo. PIB caindo significa desemprego no futuro. Os brasileiros estão endividados. Os governos erram por falta de visão. Eles tomam medidas pontuais pensando apenas nas eleições. O Bolsa Família tem mérito, mas é insuficiente para mudar o Brasil. O Ministério da Saúde está abarrotado de postos políticos. A presidente Dilma é digna e competente, mas está encurralada. O único jeito de o Brasil começar a mudar é o pessoal do “andar de cima”, como diz o jornalista Elio Gaspari, começar a se indignar. O “andar de cima” vive assustado e recluso numa sociedade violenta. Ele precisa tomar atitudes proativas, como essa que estamos vendo aqui.

ÉPOCA – Qual é o tamanho da fila de espera por atendimento na urologia?
Srougi – Hoje a fila para conseguir uma cirurgia urológica é de 1,2 mil pacientes. Duzentos estão na fila e têm câncer. Sabemos que 75% dos pacientes nunca conseguirão ser internados. Vão morrer pelo caminho. É uma fila indecente. Uma vergonha para quem exerce a medicina. Com a nova ala, vamos conseguir fazer 1,5 mil cirurgias a mais por ano. Não vamos zerar a fila, mas ela vai andar mais rápido.

ÉPOCA – Quais são os outros objetivos do projeto?
Srougi – Um dos principais é a humanização. Aqui o doente se sente valorizado. A existência dele é respeitada. Sente que tem um espaço neste planeta. Cada pedacinho desta nova ala foi criado para amenizar o sofrimento. O paciente tem um sofrimento físico e um sofrimento de alma. Tem medo de morrer, medo de deixar a família. Ela é ciência e humanismo. As novas gerações usam os velhos professores como exemplo. O espírito que levou à criação dessa nova ala é a certeza de que a medicina não é só tecnologia. Precisamos impregnar as novas gerações com sentimentos de solidariedade. Torná-las capaz de compreender os assombros dos pacientes em relação à doença e à morte. Outro objetivo é a formação técnica dos médicos, que agora poderão aprender num centro de alta tecnologia mais bem equipado do que tínhamos antes. No Hospital das Clínicas são treinados quatro mil médicos por ano. São os novos profissionais que depois vão se espalhar pelo Brasil.

ÉPOCA – Por falar nisso, faltam médicos no país? Qual é a sua opinião sobre a polêmica em torno da importação de médicos?
Srougi – Recentemente uma pesquisa realizada numa cidade do interior de São Paulo revelou que a principal aspiração da população era poder conversar com um médico. Um sistema de saúde que não consegue oferecer isso é uma barbaridade. Muitas cidades não têm médico. A população precisa se deslocar a municípios vizinhos. Seria bom poder colocar médicos nessas cidades. O problema da contratação de estrangeiros é que é uma falácia motivada por motivos políticos. O que interessa é apenas ganhar as eleições. Como os médicos, brasileiros ou estrangeiros, conseguirão trabalhar em lugares sem condição de oferecer sequer um exame de raios-X? Duvido que um médico estrangeiro enviado para um lugar distante aceite viver lá por muito tempo. Ele vai deixar o filho sem instrução? A mulher não vai querer viver num ambiente onde também possa crescer profissionalmente? Ele próprio não terá expectativas de desenvolvimento profissional e intelectual? A questão não é a nacionalidade do médico, é a falta de condições de trabalho. Essa polêmica é puro engodo.

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