domingo, 9 de junho de 2013

Você é um escravo da programação infantil?

Como os pais se submetem a uma extensa programação para as crianças nos fins de semana


ISABEL CLEMENTE

Isabel Clemente é editora de ÉPOCA na sucursal do Rio. Há 19 anos tem escrito sobre temas econômicos e sociais que compõem os desafios da história recente do país. Aos domingos, escreverá sobre família e a divertida e desafiante missão de ser mãe (Foto: Rodrigo Schmidt/ÉPOCA)
“Catálogos de festas infantis são um ótimo anticoncepcional pra mim. Eu olho e não tenho vontade nenhuma de ter outro filho“. O desabafo bem humorado de um pai reflete o terror que certas famílias vivem diante da apertadíssima agenda infantil, principalmente nos fins de semana. Em cidades como Rio e São Paulo, a oferta cultural e a demanda natural de encontros e festas dos amiguinhos dos filhos somados demandam um sacrifício ao qual os pais se submetem, ora reclamando, ora na boa, mas com a sensação de que fica um desequilíbrio no ar.
É tanta atividade que ficam todos doidos pela segunda-feira quando poderão, enfim, descansar no trabalho. Claro, ninguém aguenta essa batida. Só me dei conta disso quando voltamos a viver no Rio, no ano passado. Em Brasília, onde moramos por cinco anos, era tudo mais tranquilo. Por ser a capital uma cidade com pouca oferta cultural e um lugar onde também tínhamos poucos amigos, vivemos, eu, meu marido e minhas duas filhas, uma longa temporada devotados a nós mesmos, a maior parte do tempo. Um teatrinho aqui, uma festinha ali...e um domingo que não tinha fim. Tínhamos uma rotina mais tranquila e uma agenda em nada comparável à que nos esperava na volta ao Rio ano passado.
Experimentamos novamente a alegria de rever as pessoas queridas sem ter que pegar um avião – e pagar em seis parcelas sem juros depois. Pudemos finalmente prestigiar aniversários, aparecer em festas e fotos em vez de enviá-las por email. Experimentamos também o desafio de administrar um excesso de estímulos culturais e sociais. Quem tem filho em idade escolar sabe o quanto essas demandas aparecem, algumas concentradas num único final de semana para complicar nossa logística. Não só estávamos no Rio, terra dos amigos e da família, como tínhamos duas filhas em idade escolar.
Somados os amiguinhos da escola das duas, os amiguinhos filhos dos nossos amigos e a parentada toda, tem aniversário toda semana se bobear. É muito parabéns. Como se não fosse pouco, tem o teatro, o cinema, a exposição, a contação de história, a feira do livro, do filhote, da invenção científica, o festival do não sei o quê, e vem aí a festa junina, a julina, a agostina, a apresentação de futebol e o jogo de balé. No final, tá todo mundo trocando as bolas porque não consegue descansar.
O Rio oferece ainda programas bacanas e baratos para a família inteira. Destaco as atividades ao ar livre. Somos adeptos. À medida que a caçula cresce, fica cada vez mais fácil e legal passear por aí de bicicleta, por exemplo. E a praia! Como fui esquecer a praia? Temos ainda a sorte de ter formado um grupo bacana de pais dos amigos da escola e, juntos, todos se divertem, crianças e adultos. É realmente perfeito porque somos sociáveis. Mas isso significa que precisamos abrir espaço na agenda também para os piqueniques e os churrascos que a gente inventa.
Tudo muito sedutor, tudo muito empolgante, mas, de um tempo para cá, eu e meu marido começamos a botar um limite nessa história. E não foi fazendo forfait. Dizer não de vez em quando faz parte. É preciso selecionar e reconhecer que não podemos estar em todo lugar ao mesmo tempo. Desconfio que sejamos capazes de compreender isso, já que estamos todos no mesmo barco. Mas pisamos no freio na hora de catar o que fazer. Nada de ficar procurando algo para as meninas todo fim de semana como se o tempo fosse uma lacuna a ser preenchida com alguma aventura e o fim de semana, um presente a ser empacotado numa vistosa embalagem dourada para compensar o pecado mór de trabalhar, pagar contas, fazer compras e ir ao médico durante a semana. Sair à cata de programa infantil não pode virar um estresse pré-fim de semana. Para quem age assim, confessar algo como "passamos o fim de semana em casa, sem fazer nada" só mediante a apresentação de atestado médico. Tinha alguém doente?
Chegará o dia – todos sabemos disso – em que as crianças naturalmente sentirão que, sem encontrar amigos, sair, ir a uma festa ou estar com outras pessoas que não os “de casa“ não terão "feito nada". Tudo bem, nesse dia elas não serão mais crianças, me expressei mal. Eu só não quero desde já ensinar que dias de absoluta calmaria são sinônimo de tédio.Criança precisa pegar sol. Fato. Precisa se exercitar. Fato dois. Mas temos que nos desculpar por levá-las a um programa de adulto? Viramos escravos da programação infantil?
Uma amiga reclamava sobre o filho. "Ele já me pergunta o que vamos fazer sábado, e domingo, chia se há previsão de algo fora do interesse dele e agora me sinto obrigada a arrumar o que fazer sempre. No domingo à noite, eu e meu marido estamos podres". Taí a dificuldade. Lidar com esse barulho.

É certo que todos amamos diversão. A coisa só desanda quando a ausência de diversão vira uma tromba em casa. Ou duas. Ou três. Vai depender do número de filhos. Daí a termos que continuar levando adolescentes a festas que viram a noite todo fim de semana mesmo com pai e mãe pedindo arrego é um pulo.

Nessa corrida extenuante atrás de diversão, perpetuamos sem querer a lógica de um certo comercial de carros. Um rapaz conta para o outro o relato de seu incrível fim de semana. Passeou, dançou, namorou, dirigiu. Sua vida é um triller de aventura e prazer movido a consumo. O outro, reduzido à sua insignificância, diz "esquece", como se não tivesse nada para contar.

Nessa nova ordem mundial, em que estamos todos mais conscientes dos nossos deveres domésticos, vivemos um surto benéfico de conscientização coletiva. Estamos tendo a chance de ensinar aos nossos filhos que cuidar da casa faz parte disso que se chama viver. E que nessa atividade também há prazer, ora. É preciso resgatar a alegria das coisas simples como regar o jardim, enfeitar a casa, inventar uma fantasia caseira com meias de mulher (dá uma ótima malha para super-heróis improvisados) e talvez esperar na janela o bem-te-vi beber água do recipiente na varanda. Que tal?

Por essas e outras, mudamos também a forma como lidamos com aqueles dias que muitos chamam de “sem graça“. Está em nossas mãos ensinar aos nossos filhos como usufruir de uma tarde preguiçosa. É uma pausa na loucura e uma lição sobre por que a vida não é uma sequência ininterrupta de aventura como sugere o comercial. Não se sentir compelido a fazer algo a fim de evitar o tédio é um passo rumo à verdadeira liberdade, a de ter uma escolha. Se conseguirmos fazer isso sem ter crianças emburradas em casa, teremos dado um grande passo para ensinar a essa geração que ela pode ser um pouco menos hedonista do que se vê por aí. Quem sabe estejamos formando uma galerinha mais pé no chão que não viva em função de algum ideal publicitário.

Cada um sabe o que lhe faz feliz. Escolhas são intransferíveis e não estou aqui vendendo um modo de vida perfeito. Eu acredito que esses dias sem importância vão se empilhando na nossa história como tijolos invisíveis de um alicerce de segurança. Eles são a certeza de que, para ser feliz, não preciso de uma avalanche de acontecimentos e consumo. Os dias simples existiram e eu os aproveitei intensamente, quieta, em casa. Os dias simples me lembram que felicidade é um processo diário construído de pequenas alegrias, como a simples presença daqueles que mais amo. Mas isso é muito pessoal.

Ao fim daquele domingo, em que arrumamos os quartos, separamos brinquedos para doação e que nos ausentamos, no máximo, para ir à banca de jornal, não tínhamos feito nada de mais. As meninas acamparam na sala. Assistimos a um filme. Conversamos. Nos olhamos nos olhos, contamos histórias e demos broncas também porque ninguém é de ferro. Quando as crianças deitaram, perguntei:
– Hoje foi um dia especial, concordam?
De olhos arregalados, elas me fitavam na penumbra do quarto um pouco hesitantes.
– Vocês sabem por que foi especial?
– Por que a gente bincou? – arriscou a mais nova, de 3 anos, ainda em dúvida.
– Isso! – respondi.
– E doou brinquedos? – acrescentou a filha de 7 anos.
– Também. E mais o quê...?
...

– Porque estávamos nós quatro juntos – respondi.

Dois sorrisos apareceram. Eu tinha dado a resposta certa.

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