domingo, 14 de julho de 2013

GUEST POST: INJUSTIÇA E HUMILHAÇÃO, OS PAIS DO MEU FEMINISMO


A pedagoga, educadora popular e feminista Luiza Freire me mandou este relato muito bonito da sua epifania.

Vivo remexendo as memórias da infância. Tenho há tempos este hábito, provavelmente por acreditar que este período é a morada de muitas explicações, um lugar onde algumas respostas se escondem ou são escondidas propositalmente por nós. 
Dia desses, recordei sem mais nem menos um episódio que se revelou um tanto fundamental para a construção da postura que mais tarde eu adotaria diante do mundo, mais especificamente diante das relações de gênero. A lembrança é da primeira vez que senti que algo estava errado, demasiado errado no tratamento dispensado a meninas e meninos, ainda muito guris. A diferença saltou.  
Boa parte de meu crescimento teve como cenário a rua de uma vila simples, habitada por trabalhadores que assim como meus pais lutavam por uma vida digna com dificuldade, onde brincava e me sujava muito com alguns vizinhos de idades próximas. Dois deles em especial, irmãos. Certa vez, na casa desses vizinhos, quando ainda mal podíamos alcançar a cintura dos adultos, o pai apareceu com um objeto nas mão; seu entusiasmo era notável. Era uma revista com conteúdo pornográfico -– vulgo revista de “mulher pelada”. E o que aconteceu é o mais previsível. Ele chamou o filho e iniciou a observação da tal revista. 
A reação de nós duas, deixadas de fora sem saber por qual motivo, foi tentar a aproximação. Negativo! Isso é coisa de homem, vocês não podem ver! Obedecemos decepcionadas, enquanto o autor da negativa restabelecia a cara de satisfação. A colega de brincadeiras pareceu não ligar, talvez já estivesse acostumada. Mas eu não. Fiquei de longe, mirando os dois “machos” e me perguntando que diabos estavam vendo. 
Algum tempo depois, nesta mesma casa, com as mesmas personagens, minha precoce desconfiança se confirmou. A família havia prosperado e se não me falha a memória houve uma reforma no quintal. O que sei com clareza é que num belo dia apareceu um sótão. Ficava lá em cima, tinha escada de madeira e tudo pra subir e chegar à portinha que dava acesso ao “desconhecido”. 
Como criança arteira que era, fiquei maluca com aquilo! Imagina só, subir aquela escada, vasculhar o que estava guardado no sótão, ficar olhando pra baixo lá do alto! Só que esse desejo seria convertido em frustração num pulo, após mais uma negativa: “Vem filho, lá é muito legal, só nós podemos subir, é coisa de homem!”. E agora eu tinha certeza, havia mesmo algo muito errado acontecendo bem debaixo do meu nariz. 
Só que dessa vez, doeu. Uma dor quase insuportável pra alguém tão pequenino. Era a dor da injustiça. Pela primeira vez, eu tinha me sentido claramente injustiçada enquanto mulher. E infelizmente, muitas outras vezes viria a me sentir assim. 
Alguns anos depois, decidi romper a barreira, transgredir. Uma outra amiga, esta de colégio, tinha um irmão mais velho que guardava uma caixa com fitas embaixo da cama. Eram filmes pornô, claro, e todos sabiam. E se existia alguma preocupação da família com relação ao assunto, era o de manter as moças conscientes de que aquilo era proibido pra elas, acessível apenas para homens. Fartas dessa história, nós, as “mocinhas”, decidimos pagar pra ver. 
Ao colocar uma das fitas pra rodar no vídeo cassete, apenas duas impressões ficaram fortes em mim. Uma de que aquilo era estranho, outra de que a mulher estava sendo humilhada.  Ao contrário do que alguns pais podem de pronto pensar, inclusos os meus, não foi uma experiência traumática, foi reveladora. Aquele pequeno trecho assistido foi suficiente pra me alertar que existia um mundo onde a humilhação feminina era motivo de prazer para os homens. 
Foi assim, a partir destes sentimentos, que me tornei alguém que acredita que a mulher precisa e pode se emancipar. Que outras relações de gênero são tão necessárias quanto possíveis. A injustiça e a humilhação a que mulheres são submetidas há gerações se apresentaram pra mim como insustentáveis, e eu tinha menos de uma década de vida. 
Hoje, me pergunto quantas décadas isso ainda vai durar. Quantas precisaremos pra reconhecer e superar algo que até mesmo uma criança pode ver?  Essas respostas não moram na minha infância. Mas sigo caminhando, convicta de que ainda que o machismo e a opressão durem por muito tempo, não durarão todo o tempo. Um tempo mais igual e justo está em construção.

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