segunda-feira, 15 de julho de 2013

Quando seu filho quer ser você

A fase da vida da criança em que tudo o que ela quer é ser como papai ou mamãe. Haja responsabilidade

ISABEL CLEMENTE
  
Se não chegou o dia, ele chegará. Você notará uma expressão de admiração e dúvida no rosto da criança e será surpreendido mais uma vez por uma daquelas perguntas sacadas do baú das inocências:
“Por que eu não sou igual a você?“
A primeira vez que ouvi isso, eu estava com a filha mais velha quando ela ainda era única. No banheiro, ela debruçada no mármore, mãos apoiando o rosto, cotovelos sustentando o corpo, pernas balançando no ar. Três anos. Pelo rabo de olho, me espiava enquanto eu me arrumava. Os olhos castanhos vivos oscilavam entre a minha imagem no espelho e a dela. 
"Eu queria tanto ter a sua voz".
"A minha voz!?“
“É, e eu queria ser igual a você também“
Fitei-a por um instante infinito. Tão mais linda do que eu, tão mais cheia de sonhos, de possibilidades, de futuro, de interrogações, de reticências, de graça, de surpresas.
“Filha, quando você crescer, terá voz de adulta, e eu gosto muito da sua voz hoje"
"Mas eu quero ser igual a você!".
O tom era de aborrecimento. Pensei em dizer que ela seria melhor, diferente, mais isso ou mais aquilo. Mas esse desejo não será eterno, pensei melhor. Pelo contrário, logo chegará o dia em que ela fará questão de ser diferente de mim, o que não diminui o impacto dessa revelação. Como uma casa que vai receber visita, diante da declaração de amor, eu precisava me arrumar. Por dentro, não por fora. É essa a responsabilidade que um filho joga nas costas da gente. Não bastasse tomar conta dele, precisamos dar exemplo, corrigir o que está errado para o filho não imitar. Ser melhor, mais autêntica e generosa. Jogar o lixo fora. Arrumar a cama, quem sabe, antes de ir trabalhar. Encaixotar a bagunça mental, o medo e as dúvidas do pensamento para ficar mais leve diante da vida. 
A inocência desse desejo de imitação é a faca afiada aparando as arestas dos nossos defeitos, das eternas desculpas para não melhorar. Por elas, eu preciso cuidar de mim já. Vai que elas ficam iguais a mim mesmo. É muita responsabilidade.

Outro dia foi a vez da caçula de 3 anos vir com essa de querer estar no meu lugar, no meu corpo, na minha mente. Deve ser fase.

"Mamãe, sabe o que você é? Sabe o que você é?"
"Não, o que eu sou?"
"Você é linda!", disse, me abraçando, quando cheguei do trabalho.

Cansada, pé doendo, bolsa da rua no colo, encostei preguiçosa no sofá e fiquei observando aquele rostinho perfeito, olhos castanhos quase pretos emoldurados por longos cílios. Ela fez igual e ficou me encarando com um sorriso desconcertante e tímido, logo ela, a tagarela, esperando eu dizer alguma coisa, iluminada pelas luzes frenéticas da televisão que a irmã assistia.
"Linda é você!", eu disse.
"Você é muito mais linda, mamãe"
"Isso não é verdade"
"É sim!", ela respondeu, quase gargalhando, como quem fala o óbvio, com a autoridade de quem pode me desmentir. Confetes e brilhos nos cercavam no ar.
"Carol..."
"Mamãe, eu queria ser você!"
"Ah, filha, não, você vai crescer e se tornar uma linda mulher."
"Eu quero ser mulher agora que nem você!"

O tom era de divertimento. A conversa com minha sedutora de plantão se estendeu mais um pouco em torno do tema. E é óbvio que, como toda mãe, eu não só acho minhas filhas muito mais bonitas do que eu como entendo que o conceito de beleza em jogo vai além da imagem. 
Quando nossos filhos confessam essa vontade de estar no nosso lugar, eles externam uma identificação e projetam o futuro em cima da proximidade que nos une neste momento. Somos o modelo inescapável da vida deles. Duro é reconhecer que esse modelo irá se transformar ao longo dos anos. Irá envelhecer junto com certas ideias e adquirir características que não mais os interesssará. Pode ser que, mesmo críticos, ao separar o joio do trigo, eles ainda guardem o que de bom conseguimos passar e incorporar lá atrás quando nos tocamos que era tempo de arrumar a casa. A confissão da segunda filha refrescou minha memória sobre o quanto eu preciso estar vigilante, independente de chegar ou não o dia em que elas não pensarão mais assim. 
Não pensarão mais assim? Eu disse isso? Quando isso vai acontecer!?
Enquanto eu escrevia este texto, e me torturava com essa pergunta, minha filha mais velha, de 7 anos, chegou perto de mim e eu me arrisquei numa conversa muito perigosa.
“Posso te fazer uma pergunta?“
“Hum-hum“.
“Quando você era pequenininha, queria ser como eu. Você ainda quer ser igual a mim?“
Eu nem tinha terminado a pergunta e já tinha me arrependido. Eu não estava preparada para qualquer resposta.
“Quando adulta? Quero sim“, respondeu, com naturalidade.
“Igual como?“, eu, respirando aliviada.
“Com o cabelo, as roupas, o nariz, a boca, os sapatos, os olhos, o branco dos olhos...“

Eu ri e, boba, fiquei emocionada. Que admiração é essa que não vê defeitos na gente - só quando há bronca e ranger de dentes. Que tipo de lago sou eu diante de um Narciso tão puro que abre mão do próprio reflexo para admirar a imagem do que ele gostaria de ser mas não será? 

Eu só não quero ser jornalista - disse, meio se desculpando, antes de sair.

Fiquemos tranquilos, pois. A autenticidade dos nossos filhos será a nossa redenção. 

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