terça-feira, 3 de setembro de 2013

Amamentação e Psiquismo

A amamentação é uma das principais experiências que ocorre na relação entre o bebê e a mãe. Une a saciedade ao prazer e possibilita que a intimidade na dupla mãe/bebê se instale. Perturbações nesse vínculo inicial se refletem em dificuldades na hora de amamentar.  Diversos psicanalistas se dedicaram ao estudo dessa etapa da vida e possibilitaram estratégias de intervenção, visando construir um espaço de segurança e confiança entre mãe, bebê e pai. Vamos conversar com a psicanalista, Denise Feliciano*,  coordenadora do curso, Amamentação e Psiquismo: Reflexões**.

Luciana: Como se interessou pelo estudo da amamentação em relação ao psiquismo?
Denise: Ao me tornar mãe há quase 18 anos e frequentar o universo de mães e bebês, percebi que amamentação era uma conquista delicada e complexa, muito diferente do tom de simplicidade que a mídia pró-amamentação queria transmitir. Assisti cenas que expressavam um grande desencontro e sofrimento da dupla mãe-bebê que me levaram a pesquisar sobre o tema, na intenção de que o saber psicanalítico pudesse ajudar essas mulheres.
Freud, em 1893, foi chamado a ajudar uma mulher com dificuldades de amamentação. Ela apresentava pouca produção de leite e dores quando o bebê era colocado para mamar, além de inapetência e insônia. Esses sintomas já haviam aparecido anteriormente, quando o primeiro filho nasceu, ele foi entregue aos cuidados de uma ama-de-leite. Após ser submetida a sessões de hipnose ela pôde amamentar satisfatoriamente por oito meses.
À medida que fui pesquisando constatei que havia uma grande luta dos setores de saúde pública para evitar o elevado índice de desmame precoce (1º mês de vida). O mais intrigante foi saber que o insucesso na amamentação é uma herança de séculos e não uma consequência da agitada vida contemporânea das mulheres, como tantas vezes se escuta dizer. Pensei: por que tanta dificuldade em amamentar? Por que as campanhas e os inúmeros esforços dedicados à conscientização e treino das mães não são suficientes? Levantei a hipótese de que haveria fatores psíquicos que poderiam estar relacionados ao sucesso ou insucesso da amamentação.

Luciana: Quais as principais descobertas da psicanálise nessa área de estudo?
Denise: No que diz respeito às reverberações da amamentação no psiquismo feminino há várias. É importante ressaltar que são inconscientes e por isso causadores de sentimentos dolorosos de impotência e auto-desvalorização:
  • O artigo citado acima mostra que a vontade consciente não determina o sucesso da amamentação. Essa paciente confessou seu descontentamento ao perceber que a hipnose havia conseguido o que ela sozinha, com toda sua vontade, não havia conseguido. Freud com o tempo abandonou a prática da hipnose por ter se mostrado insuficiente para gerar mudanças mais significativas no mundo mental. Entretanto, esse caso ilustra que os fenômenos intrapsíquicos da mãe influenciam o amamentar.
  • Hélène Deutsch, em 1951, interessou-se sobre a psicologia da mulher e da maternidade. Em um estudo pormenorizado sobre a lactância mostra que as dificuldades de aleitar têm relação com conflitos inconscientes oriundo das experiências da mãe enquanto bebê (experiências não elaboradas), que são atualizadas na relação com o filho e com fantasias relacionadas à sexualidade. O seio, antes de ser um representante nutricional, ocupa na sociedade ocidental um importante lugar na sexualidade feminina. De modo geral, há uma negação desse aspecto, provocando na mulher sentimentos de culpa por sensações que são vividas como intoleráveis.
  • Mary Langer em seu livro, Maternidade e Sexo (1981), também investigou o tema. Afirmou que e a culpa em viver a amamentação de maneira satisfatória e prazerosa faria com que muitas mulheres desenvolvessem fissuras e infecções – como forma de proteção psíquica e autopunição, uma sabotagem do superego ao prazer.
  • Mas nem tudo depende da mãe. Middlemore, psicanalista inglêsa, na década de 40, interessou-se pelo vínculo na amamentação, considerando que a dinâmica da amamentação pode afetar a criança para toda a vida. Num estudo sistemático sobre o psiquismo na situação amamentar, observou muitas duplas e descreveu o processo de interação de acordo com características de personalidade tanto da mãe quanto do bebê, atribuindo a responsabilidade do sucesso de acordo com as possibilidades psíquicas de ambos.
  • A importância da amamentação para o vínculo mãe-bebê foi amplamente descrita por Winnicott, que afirmou que uma amamentação bem sucedida, que estaria relacionada a um vínculo de prazer mútuo, seria a grande riqueza do início de vida.
  • Melanie Klein em um artigo de 1936 também afirmou que ao lado de todas as dinâmicas simbólicas ligadas ao seio, a amamentação concreta teria importância fundamental na vida mental da criança, mas tudo dependerá das possibilidades da dupla mãe/bebê.

Luciana: Como usar as contribuições da psicanálise no trabalho prático com a dupla mãe/bebê?
Denise: Esses estudos permitem que tenhamos uma escuta para os aspectos inconscientes, subjacentes às dificuldades de encontro da dupla. Transtornos na amamentação comprometem o vínculo familiar. Entrar em contato com os afetos e fantasias inconscientes relacionados a esse período, permite maior fluidez emocional no casal parental, isso repercute no bebê.

Luciana: Você poderia nos contar alguns casos de intervenção psicanalítica para que o leitor entenda o trabalho que realiza?
Denise: Em geral, o pediatra encaminha a família após esgotarem-se os recursos referentes à adaptação da dupla e manejo do aleitamento. Muitas vezes, ele já percebe haver dificuldades de ordem emocional nas consultas de puericultura.
Certa vez fui ver uma mãe que já tinha tido três crises de mastite, o que surpreendeu a pediatra, que supôs haver um forte componente emocional na raiz dessas infecções. De fato, em nossos encontros conversamos sobre fantasias muito primitivas que estavam relacionadas à sua própria relação infantil com os pais e com o marido. Essa moça não conseguiu amamentar mais que seis meses, mas após a intervenção psicanalítica encontrou maneiras menos persecutórias de interação com seu bebê. Nem sempre a intervenção favorece a manutenção da amamentação concretamente, porque muitas vezes as dificuldades são relacionadas a esferas muito profundas do psiquismo, que só uma análise poderia acessar. O objetivo do trabalho é contribuir para que pai-mãe-bebê desenvolvam um vínculo de trocas afetivas.

Luciana: Qual o lugar do pai quando todas as atenções da mulher se voltam ao bebê, como ajuda-lo a enfrentar esse momento?
Denise: Lembro-me de uma família que comecei a atender quando o bebê estava com dois meses e quase desmamado. No primeiro encontro surgiu um traço competitivo entre o pai e o bebê pela atenção da mãe. Esse pai, extremamente dedicado, sentia-se menos valorizado que a mãe, pois considerava suas funções como sendo secundárias em relação aos cuidados com o bebê. A amamentação potencializava inconscientemente esse sofrimento e reverberava na mãe, que apresentava  diminuição do leite e no bebê, que não mamava bem. Quando pudemos conversar sobre esses sentimentos inconscientes, o sintoma se desfez e a amamentação seguiu muito bem, por mais de 1 ano. O pai ao tomar consciência de suas próprias dificuldades procurou uma análise para si, o que permitiu uma dinâmica familiar muito mais prazerosa para todos.

Luciana: E o desmame? O que devemos saber ou fazer para que essa etapa não se torne traumática?
Denise: O desmame é tão fundamental quanto à construção da amamentação, pois marca uma importante etapa de individuação na constituição da subjetividade. Para tanto é necessário que possa acontecer dentro de um tempo que não seja nem precoce e nem tão longo, que impeça o desenvolvimento necessário da autonomia. Quando a amamentação é coadjuvante de um vínculo bem constituído e saudável, o desmame acontece de modo gradativo e sem traumas para ambas as partes. Dificuldades nessa etapa também merecem a atenção de uma intervenção psicanalítica.

Luciana: Seu curso não é voltado exclusivamente para psicanalistas, abrange profissionais de outras áreas de saúde, por quê?
Denise: O objetivo do curso é desenvolver o olhar e a escuta do participante para compreender a complexa dinâmica que envolve a amamentação. Além dos aspectos psíquicos é preciso considerar a forte influência de fatores socioculturais. O profissional que está ao lado da família, nesse momento tão delicado, precisa respeitar os desencontros e limites da dupla amamentar. Muitas dificuldades tornam-se mais agudas e traumáticas pela falta de sensibilidade de alguns profissionais, que não sabem como ajudar e deixam as mulheres sozinhas com sentimentos de frustração e impotência.
A indiscutível qualidade do leite materno em suas características nutricionais e imunológicas leva, muitas vezes, alguns profissionais a insistências e cobranças para que a mãe amamente, quando, nem sempre, há condições psíquicas para isso. O reducionismo de associar a mulher à fêmea mamífera e o aleitamento a um suposto instinto materno tem causado desastres e marcas profundas para muitas mulheres e seus filhos.

*Denise de Sousa Feliciano é Psicóloga e Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise de Criança e Professora do Instituto Sedes Sapientiae; Doutora em psicologia pelo IPUSP-SP, especialização em Psicopatologia do Bebê pela USP e Université Paris 12; Membro Filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de SP; formação em Observação da Relação Mãe Bebê pelo Instituto da SBPSP; Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria e dos Departamentos de Saúde Mental e Aleitamento Materno da Sociedade de Pediatria de SP.
Dissertação: A amamentação e seus enredamentos psíquicos.
Tese: Para além do seio: uma proposta de intervenção psicanalítica nas dificuldades de amamentação.
denisefeliciano@uol.com.br
** Destina-se a Pediatras, ginecologistas, obstetras, enfermeiros, psicólogos e demais profissionais de saúde materno-infantil. Início 13/09. Maiores informações no site: http://www.sedes.org.br/ ou tel. 3866-2730.

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