Por Ivone Zeger
Todo ato de violência gera indignação nas pessoas. Buscar suas causas, analisar a ação de todos os lados envolvidos e dirimir consequências são tarefas do Estado e da própria sociedade que se indigna. Sendo mais objetiva, especifico o tipo de violência da qual tratarei nesse artigo: a violência contra a mulher. E, relacionada a essa violência, outra não menos importante de se analisar, a que ocorre contra o nascituro, cujos direitos foram elencados no que está sendo chamado de Estatuto do Nascituro, também intitulado de “bolsa estupro” para os que são contra sua aprovação. Já deu para perceber, não? É uma peça jurídica que vem gerando muita polêmica e já foi aprovada na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. Enquanto segue nos trâmites do poder, podemos discuti-lo. Antes, porém, é bom saber que nascituro é o ser humano concebido, não nascido. E já há leis na Constituição que lhe garantem proteção, inclusive, nas leis de herança e sucessão.
Para aprofundar no assunto, retrocedamos alguns meses. Em outubro de 2012, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu, por unanimidade, que o crime de estupro, assim como o de violência sexual, é hediondo, mesmo sem morte ou grave lesão da vítima. E aqui, é bom que se ressalte: a vítima pode ser tanto mulher, quanto transexual ou travesti. Cada movimento da lei no sentido de interpretar com justiça a violência contra o ser humano, pertença ele a uma minoria ou não, é tido como um avanço e favorece a sociedade como um todo.
Na tentativa de cercar as vítimas de meios para superar tamanha atrocidade, o Senado aprovou, no começo de julho desse ano, o Projeto de Lei da Câmara 3/2013, que assegura atendimento e tratamento imediatos – o texto especifica “atendimento emergencial, integral e multidisciplinar”, incluindo auxílio psicológico e assistencial – a vítimas de violência sexual.
De acordo com o projeto, médicos e policiais devem atuar juntos, por exemplo, no recolhimento de material genético para que a perícia consiga identificar o agressor por meio de exame de DNA. Na prática, isso diminui não só o risco da impunidade do agressor como ameniza o constrangimento, afinal, uma unidade do SUS, pelo menos teoricamente, deve ser um ambiente menos constrangedor do que o Instituto Médico Legal, que é onde normalmente se fazem as perícias.
Além da violência física e psicológica, o crime de estupro pode trazer mais uma consequência que é, nesse contexto, revoltante: a gravidez. Para evitá-la, o mesmo projeto do Senado indica que no SUS seja ministrada a pílula do dia seguinte, que é bastante eficiente. E é aqui que começa a polêmica.
Já há quem afirme, em textos aqui e ali, que ministrar a pílula do dia seguinte, ao invés de excelente profilaxia, seria uma indução à prática do aborto, uma vez que essa pílula age satisfatoriamente mesmo que já tenha acontecido a fecundação. Mas atenção: o artigo 128 do Código Penal diz que não se pune o aborto feito por médico em duas situações: se não houver outro meio de salvar a vida da paciente, daí chamado “aborto necessário”; e em casos de estupro, determinando que deva existir o consentimento da paciente ou de seu representante legal. Ora, é óbvio que a pílula é preferível ao aborto, este sim, extremamente traumático à mulher, seja qual for sua condição.
Mas a polêmica esquenta quando analisamos o item do Estatuto do Nascituro que se acerca da questão do aborto. Na sua totalidade, trata-se de um texto que defende a vida e o direito de nascer, conclamando pais e a sociedade a cuidar dos embriões, inclusive dos embriões congelados. Claro, sempre é louvável reforçar a responsabilidade dos cidadãos, porém, pelo menos o artigo 13º e seus incisos soam um tanto desconectados com o que já foi conquistado no âmbito da legislação em favor da mulher. Eu explico:
O artigo 13º e seus três incisos conclamam os direitos do nascituro da seguinte forma: “o nascituro concebido em decorrência de estupro terá assegurado os seguintes direitos, ressalvados o disposto no artigo 128 do Código Penal Brasileiro: I – direito à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da mãe; II – direito à pensão alimentícia equivalente a um salário mínimo, até que a criança complete 18 anos; III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento.
Até aqui, parece tudo muito justo, embora, é bom lembrar, a prioridade deva ser a assistência integral à mulher quando ocorrida a violência, não só para poder realizar um Boletim de Ocorrência e evitar a total impunidade, como para providenciar a interrupção da gravidez. Como já foi dito acima, o aborto é, nesses casos, uma intervenção médica totalmente legal.
Mas é o parágrafo único do mesmo artigo 13º que causa imensa estranheza, não só às feministas. Repare: “se for identificado o genitor, será ele o responsável pela pensão alimentícia a que se refere o inciso II desse artigo; se não for identificado, ou se for insolvente, a obrigação recairá sobre o Estado”.
A pergunta que se faz, especialmente a fazem as mulheres, é: uma vez identificado o genitor, não será ele o estuprador que deverá ser enquadrado no Código Penal? E, uma vez preso, pagará pensão alimentícia? E mais: a quem caberá “ir atrás” do criminoso? A assistência social ou a polícia? Uma vez que o criminoso, aqui chamado de “genitor” pagará pensão, este poderá reivindicar visitas à criança? Alguém espera que dessa forma se esteja colaborando com a recuperação moral de um criminoso? À custa da tortura mental e psicológica da mulher e, por consequência, da criança?
Além das lacunas legais, parece que os formuladores do Estatuto não percebem que falam de um crime, incorrendo, portanto, na sua relativização. Tem sido uma luta das mulheres, por meio de vários movimentos sociais, alertar para a “cultura do estupro” que ainda reina na sociedade, não só brasileira, como em outros locais do mundo, especialmente naqueles países onde a religiosidade fervorosa comanda o Estado.
A polêmica em relação ao aborto, entretanto, está só no começo. Em fevereiro do ano passado, foi noticiado na mídia o “puxão de orelha” que levaram da Organização das Nações Unidas a presidente Dilma Rousseff e a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci. O motivo foram os números apontados por estudo feito no Brasil: a cada ano, 200 mil mulheres morrem de aborto clandestino. Os especialistas afirmam que a alta taxa de mortes está vinculada à criminalização do aborto.
O governo precisa se desvencilhar do jogo de poder do Legislativo ao qual está mais refém do que vinculado de forma equilibrada – o que seria desejável numa democracia sadia – e olhar para esse número desolador. Nós, pagadores de impostos, desejamos que, no mínimo, sejamos bem atendidos nos serviços públicos e respeitados. Vale lembrar: mesmo com toda essa polêmica acerca do aborto, as clínicas clandestinas existem, são sofisticadas e estão à disposição das mulheres que podem pagar.
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, integrante da Comissão de Direito de Família da OAB-SP e autora dos livros Herança: Perguntas e Respostas e Família: Perguntas e Respostas.
Revista Consultor Jurídico
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