sábado, 12 de outubro de 2013

"As pessoas precisam saber o que acontece de verdade em meu país", diz congolesa refugiada no Brasil

por Graziela Salomão

Aos 27 anos, Mireille Zena Mbali fugiu com os três filhos da República Democrática do Congo após seu marido ser assassinado e ela estuprada (em frente às crianças) por soldados do governo. Ela contou sua história emocionante a Marie Claire

Zena e seu filho mais velho, Abel, estão há quase um ano no Brasil. "Me sinto presa", diz (Foto: Graziela Salomão)
ZENA E SEU FILHO MAIS VELHO, ABEL, ESTÃO HÁ QUASE
UM ANO NO BRASIL. "ME SINTO PRESA", DIZ
(FOTO: GRAZIELA SALOMÃO)
Sem sonhos, sem esperança e sem saudades. Com um olhar triste, Mireille Zena Mbali passa seus dias cuidando dos três filhos - Abel, de 8 anos, Barrack, de 4, e Arron, de 2 - em uma casa de acolhida em São Paulo. Na bagagem, a congolesa de 27 anos não trouxe nada além da roupa do corpo e das marcas na alma de uma violência desenfreada na República Democrática do Congo.

Mireille enfrenta dificuldades desde cedo. O pai abandonou a mãe ainda grávida e se mudou para uma província distante. A jovem nunca o conheceu, não sabe se tem irmãos ou outra família por parte dele. Viveu apenas com a mãe, que tentou reconstruir a vida, casou novamente e teve mais quatro filhos.

Já adolescente, a única saída para Mireille era o casamento, pois não tinha onde ou com quem ficar. Por causa disso, sua tia lhe arranjou um marido. Na época, a jovem tinha apenas 16 anos. A união não foi boa; quando vai falar do convívio com ele, as palavras são distantes. “Me acostumei”, diz apenas, sem confirmar ou dar mais detalhes sobre a rotina de casada. O silêncio pode indicar algo muito comum em seu país: as mulheres sofrerem violência por parte do parceiro.

QUANDO TUDO MUDOU
“Ele saia para trabalhar junto com o patrão todos os dias, mas daquela vez foi diferente. Ele não voltou mais. Foi assassinado”. O marido de Mireille trabalhava como conselheiro-chefe da região onde moravam. Ela afirma que a ligação do chefe dele com a política foi a causa da morte.

Poucos dias depois, viria o drama que acabaria de vez com aquela família.Mireille foi acordada, tarde da noite, com batidas na porta. “Eles gritavam para que eu abrisse, mas estava sozinha com as crianças”. Ela ignorou a ordem, afinal, não poderia ser ninguém que conhecesse chegando tão tarde a sua casa. A porta, no entanto, era frágil e os invasores conseguiram entrar. Eram quatro soldados do governo em busca de seu marido.

Depois de muita insistência para saber sobre ele, os soldados prenderam os braços de Mireille para trás e anunciaram. “Se ele não está, então hoje será o último dia de sua vida”. Ao ouvir isso, Abel, o filho mais velho do casal, tentou evitar que os homens partissem para cima de sua mãe, mas eles bateram no menino, que caiu no chão desacordado. Partiram, então, para cima dela. “Eles bateram em mim e depois me violaram”. A história de Mireille não é exceção, mas sim a regra. Não importa a idade, soldados e rebeldes abusam física e sexualmente das mulheres congolesas. E as matam depois.

A situação é mesmo trágica. Na República Democrática do Congo, 48 mulheres são estupradas a cada hora, segundo um estudo publicado no "American Journal of Public Health". Os culpados? Tanto os rebeldes como as tropas do governo. Esses últimos, no caso, foram os algozes de Mireille.

Mireille não tem coragem de pronunciar a palavra “estupro”. No momento em que conta esta parte de sua vida, seus olhos ficam marejados e todo o equilíbrio que tenta manter durante a entrevista, se vai. Ela para de falar por minutos. É um silêncio duro, mas muito vivo mesmo depois de um ano e de quilômetros longe de todo o cenário de desespero. Os filhos assistiram a tudo, como ainda fazem quando ela conta a história. Abel, que estava presente no dia e tentou defender a mãe, também estava ao lado dela no dia em que ela conversou com Marie Claire.
MULHERES COMO ZENA FOGEM DO PAÍS PARA SOBREVIVEREM (Foto: Getty Images)
MULHERES COMO ZENA FOGEM DO PAÍS
PARA SOBREVIVEREM (FOTO: GETTY IMAGES)
FUGA PELA SOBREVIVÊNCIA
Assim como Mireille, milhões de pessoas deixaram suas casas no país. O monitoramento é da ONU. Eles fogem para sobreviver de um conflito étnico que dura mais de 53 anos, desde que os belgas abandonaram a região. Entre 1998 e 2003, grupos tribais armados e países vizinhos, como Uganda, Ruanda e Angola, brigaram pelas riquezas naturais da região. O presidente Joseph Kabila tentou retomar o controle do território em 2004, mas as milícias continuaram lutando pelo poder. Em 2008, os conflitos se intensificaram e aprofundaram o caos.

Um amigo do marido de Mireille também achou que esse deveria ser o destino dela. Foi ele quem a levou para o hospital depois de tudo. E foi ele, também, quem sugeriu que ela saísse dali porque os soldados voltariam. Para não ter o mesmo fim que seu marido, ela aceitou e foi para um convento de irmãs, onde ficou por dois meses. “Mas eu não podia ficar lá para sempre com meus filhos”, diz. Graças a uma delegação católica que excursionava pela região, Mireille e o que restou de sua família conseguiram ir para Ruanda e, logo depois, para a África do Sul. Com o auxilio de um projeto humanitário coordenado pela Irmã Angélique Namaika, ela veio para o Brasil. Angélique é uma freira congolesa que recebeu um prêmio graças aos trabalhos que têm realizado com os refugiados.

CHEGADA DIFÍCIL
Alfabetizada apenas até o sexto ano, a congolesa fala francês, língua oficial do país, e o suaíli. Ao chegar aqui, esse foi o primeiro choque de realidade: ninguém a entendia. Por não conseguir pedir ajuda, dormiu na frente de uma igreja no bairro do Brás, zona central da cidade. Apenas no dia seguinte, quando uma mulher decidiu dar bolachas para as crianças comerem, foi que ela encontrou a chance de ter, ao menos, onde ficar. Aquela mulher que a ajudava e compreendia o francês era, também, uma refugiada que a levou para o Cáritas, entidade de promoção e atuação social que fica na capital paulista.

A nova terra trouxe difíceis adaptações a Mireille e sua família. “Me sinto como se estivesse presa aqui. Acordo, tomo café, almoço, tomo lanche, pego as crianças e durmo. Tudo sempre igual, não posso sair. Se as crianças estão brincando e alguém briga com eles, a culpa é sempre dos meus filhos, porque eles não são daqui”, reclama. Na Casa de Acolhida, onde vive atualmente, não moram apenas refugiados, mas também famílias brasileiras e moradores de rua. Mireille se sente excluída por não falar direito a língua, por não poder cozinhar, por não poder viver. Ela não sabe responder quando pergunto pelo que sonha ou pelo que luta. Só abre um sorriso quando fala o que gostaria de conhecer em São Paulo: “a Casa das Mulheres”, um espaço localizado na Penha, zona leste da capital, que acolhe outros refugiados.

Mireille sabe como foi importante a coragem que teve em contar sua história, por mais que seja difícil. “As pessoas precisam saber o que acontece de verdade por lá, a violência que as mulheres sofrem. Alguém que viola a gente desta forma faz muito mal”, finaliza.

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