segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Ciranda da pirraça

Enfrentar uma criança em fúria é missão perdida. Respire fundo e espere passar a tempestade

ISABEL CLEMENTE

Logo após minhas colunas sobre os malefícios do castigo e a falácia da recompensa, uma amiga querida me liga.
"Fiquei curiosa. Faz o quê então?".
Em seguida, Gabi me contou a razão do ceticismo. O filho mais velho, um menino ativo e inteligente de 8 anos, tinha batido na avó e mandado ela tomar naquele lugar. Susto geral.
"Fiquei chocada! Eu tinha chegado de viagem com um presente para ele. Falei, expliquei, briguei. Que história é essa de falar palavrão? Não respeitar os mais velhos? Botei de castigo. Não dei o presente".
Rimos um pouco pra aliviar. Realmente, entregar um presente logo depois dessa cena vai contra o manual da própria intuição.
Ao condenar castigos, Alfie Kohn, autor de Unconditional Pareting _ leitura que recomendo_ deveria ter colocado um asterisco em algum lugar com uma nota de rodapé num tom repleto de compreensão. “Queridos pais, se vocês têm se esforçado para seguir os princípios do amor incondicional mas, num belo dia, a criança abusou, a paciência acabou, o socorro não chegou, a TPM da mulher se instalou, e ainda tinha um irmão mais novo para implicar, e você gritou, deu um chilique e botou de castigo, juro que não vou te julgar".
Todos temos nossos dias de asterisco. Com bom humor, a publicitária Alessandra Possato me conta o dela.
"Recentemente, o Frederico (11 anos) escolheu mal no que gastar todo o dinheiro que andou juntando: versão nova de um game que acabou de ser lançado (GTA 5). Trata-se de um jogo violento, caro e que nenhuma mãe curte, mas 'todos os amigos já compraram'. Deu piti, durante dois dias, para me convencer a deixá-lo comprar. Birra de pré-adolescente vem acompanhada de argumentos: 'Nossa, mãe! O dinheiro é meu e esse game tem muitas fases... que não acabam nunca!'; 'Sabia que é o game em que mais investiram tempo e dinheiro até hoje?'. Acabei cedendo e topando ir ao shopping para procurar e conhecer. Lá, enquanto eu pagava uma conta no caixa eletrônico (ainda não estava totalmente convencida), o Fred insistia: 'E aí, mãe? A gente vai ou não comprar?'. O Lucca (4 anos), comparsa do irmão em vários crimes, intensificava o coro: 'Compa, mãe! O dinhelo é dele!'; 'Depois, você compa também um binquedo baratinho na Hi Happy pa mim?'. Eu tentava ignorar/desligar e me concentrar nos boletos, mas não é que surge uma amiga que não vejo há anos (com um de seus filhos aparentemente muito comportado). Ela sorriu e perguntou: 'Esses são os seus?'. Deu vontade de dizer que não (rsrs). Não sei o que mais me incomoda: as birras, os novos produtos com campanhas irresistíveis ou, às vezes, acreditar que só os meus querem enlouquecer a mãe".
Também tenho os meus dias de me perguntar “não sei o que fazer, não conheço mais minhas filhas e não sei que botão apertar“. O filho às vezes consegue destruir nossa convicção sobre como agir. E fazem isso ao ponto de nos deixar com raiva de Alfie Kohn. Dão respostinhas, gritam, ou pegam na ferida, porque eles sabem fazer isso desde cedo. Já ouvi da caçula num momento de raiva que ela não vai ter filhos porque adultos são muito ocupados. Está bom pra você? E soltou essa enquanto eu corria para deixar o peixe temperado para nosso almoço e poder brincar com ela. Eu me conformo em saber que essas duas da minha casa possuem argumentos para se defenderem até de nós o que, na prática, significa ouvir tiradas desconcertantes, ora engraçadas, ora irritantes. Acontece na sua casa? Toca aqui.
Aí a gente libera o asterisco, se irrita e diz “não, querida, você não pode acrescentar chocolate a tudo que você precisa comer todos os dias. Então fique com fome e não vá ao teatro mais tarde“. Ameaça está na lista das atitudes a serem evitadas, mas, como num passe de mágica, ou como resultado de uma terapia familiar condensada, a criança toma a vitamina de banana toda e ainda repete. Sem sinal de chateação.
A pergunta que deveria nos guiar é uma bem simples: com que frequência somos chatos, impacientes, irritados, mal-humorados? Se a resposta for “quase sempre“, pode crer, há algo errado com a gente. Esse é o meu parâmetro.
Se existe uma certeza no dia-a-dia com as crianças é que elas irão nos provocar, argumentar, responder, criticar e por aí vai, inclusive no dia delas, o Dia das Crianças, quando você se esforçou para fazer o dia perfeito, começando por você mesmo.
Daí você vai andar de bicicleta com o moleque, leva à piscina, à praia ou ao parque. Compra aquele presente sonhado para o qual você juntou dinheiro, ou não. Fez um almoço especial. Liberou batata-frita e bala. Fez a criança rir de gargalhar, exauriu todas as suas forças brincando, mas chega no fim do dia e ela só pensa em te fazer chorar. De repente, tudo termina mal, em choro e irritação.
Deixe passar. Enfrentar uma criança em fúria pode ser uma das missões mais improdutivas que você empreenderá na vida. Conte até 238 se preciso for. Respire fundo várias vezes. Às vezes não é só cansaço. Muitas vezes são insondáveis os motivos por trás do choro irritado. Sem falar que há grandes chances da criança aparecer atrás de você com um sorriso inesperado perguntando se você já temperou o peixe e pode brincar agora.
Segure a vontade de ser irônico e perguntar onde foi parar o chilique. Saiu pela janela, ué, evaporou. Chiliques são altamente voláteis. Que importa agora se restou apenas a amizade? Há filhos que são tempestade, outros que parecem um lago plácido e gentil. Crianças são muito diferentes, mas todas têm a mesma natureza inocente, dependente e capacidade infinita de se sentir feliz com muito pouco. O amor que elas nos oferecem de volta mais que paga as eventuais chateações. Todo mundo tem um filho que faz pirraça, só a bailarina que não tem. 

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