sábado, 5 de outubro de 2013

O encanto das coisas imperfeitas.

Por Claudia Penteado

  (Foto: Divulgação)

Gosto de coisas que parecem erro. A frase define Frances Ha, uma jovem de 27 anos que dá nome ao singelo filme de Noah Baumbach e que lança ao estrelato a jovem Greta Gerwig. Frances vive em uma espécie de terra do nunca particular, em que a coisa mais importante é a devoção à sua melhor amiga, Sophie. Pouca coisa realmente importa além dos bons momentos passados com a amiga, as aulas de dança em que tenta desajeitadamente se enquadrar e um namorado que não parece fazer muita diferença mesmo.
Morando com Sophie em Nova York, Frances acredita que um dia fará parte da companhia de dança na qual é somente aprendiz, e sobrevive de um jeito meio destrambelhado, cercada por pessoas aparentemente mais maduras, resolvidas e capazes do que ela. Frances, ao contrário de todos que a rodeiam, enxerga o mundo sem gravidade ou urgência, através de olhos que em diversas ocasiões parecem pertencer a uma menina de 10 anos. Seus sentimentos são puros, joviais, e as atitudes desconjuntadamente ingênuas, muitas vezes quase sem sentido.
Frances contrasta com a mania de perfeição que comanda a rotina da imensa maioria das pessoas "adultas". Sua predileção por "brincar", no sentido literal da palavra, salpicando a vida de uma graça que praticamente só ela enxerga, é um retrato do quanto deixamos a imaginação de lado para nos preocupar apenas com as coisas práticas, com a "imagem", com a qual aparecemos diante dos outros.
Mais do que isso: controlamos cada passo dado, aplicamos filtro em cada foto, procuramos falar ou escrever apenas coisas inteligentes o tempo todo e manter intacta a nossa reputação diante do mundo. Isso causa tensão, ansiedade, e, principalmente, nos descola de um lado divertido e lúdico da vida que ficou para trás - uhn, talvez nos idos da nossa pré-adolescência.
Vivendo essa fase, minha filha de 10 anos muitas vezes ainda faz graça com seu visual, posta fotos fazendo caretas no melhor estilo Frances Ha, dança pela rua "como se não houvesse ninguém olhando". Já ouvi comentários de pessoas impressionadas com seu "desprendimento" e espontaneidade, como se o fato de não se preocupar se o nariz ou a boca saíram tortos numa foto fosse algo bastante exótico nos dias de hoje. E é. Perdemos a capacidade de permitir que o mundo enxergue a nossa imperfeição natural, perdemos a capacidade de rir de nós mesmos e do fato de não sermos, o tempo todo, lindos, portadores de sorrisos perfeitos ou cabelos impecavelmente penteados (eu que o diga, rs).
O estranho encanto de Frances Ha só é encanto porque é nela que o enxergamos e não em nós mesmos, pois nossa autocrítica não nos permite ser assim...tão imperfeitos. Mas todos somos também Frances Ha. Temos nossos momentos extremamente sem graça, temos vontade de vestir roupas esquisitas ou repetir uma mesma roupa três dias seguidos, sair sem maquiagem, correr pela rua sem nos preocuparmos com quem está olhando, brincar de luta com uma amiga no meio da praça, cantar alto no metrô, rir às gargalhadas e sem explicação.
O excesso de controle sobre nossas imagens e a obsessão em parecer "cool" nos fizeram e nos fazem esquecer de... brincar. O brincar que o pediatra e psicanalista D.W. Winnicott define como a única possibilidade de ver fruir nossa liberdade de criação. E criatividade, aqui, não significa aquele conceito socialmente aceito de criação bem sucedida ou aclamada, mas sim um colorido nas atitudes e na nossa relação com o mundo exterior.
Quando Frances tenta ser cool e se enquadrar, se perde. Quando segue seus próprios instintos, literalmente sem vergonha, acerta. No final do filme, aparece mais segura de si - pois conquista algum respeito genuíno das pessoas "adultas" ao seu redor, ao tornar-se coreógrafa, materializando numa dança de movimentos desencontrados sua perspectiva do mundo, lúdica e incoerente. Seu olhar brincalhão e "errado" transferido para o palco, em forma de um "projeto profissional", é finalmente olhado de uma outra maneira pelas pessoas. A menina descompassada acerta o passo com o mundo social. Frances Ha torna-se, finalmente, "cool".
Tentar ser cool o tempo todo pode ser um verdadeiro tormento. Seria bem melhor se conseguíssemos jamais perder de vista nossa Frances Ha e, através desse olhar, dar uma perspectiva criativa às nossas vidas que independa de ajustes e adaptações ao que - acreditamos - se espera de nós.
Frances Ha é tão libertadora e nos faz sair do cinema com a sensação de ter estado com uma velha amiga durante cerca de uma hora e meia, porque nos reconhecemos nela. Inicialmente custamos a nos enxergar, mas depois de um certo tempo Frances Ha nos é intensamente familiar, comovente, inebriante. Não queremos mais nos separar dela. Não seria maravilhoso manter essa conexão, a vida inteira? 
perfil Claudia Penteado - blog da Ruth (Foto: ÉPOCA)


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