terça-feira, 1 de outubro de 2013

Silêncio na casa: o que as crianças estão fazendo?

Quando o filho não chama mais a toda hora, você se dá conta de que ele está crescendo e você finalmente começa a ganhar tempo

ISABEL CLEMENTE

À medida que os filhos crescem, recuperamos parte do tempo dedicado a eles para nós. São conquistas muito sutis. O banho já não dura mais cinco minutos. Quem sabe sete. As refeições começam a sofrer menos interrupções e se rolar um “manhêeee, acabeiiiii“, como de praxe, você tem a opção de responder “se limpa aí vai", mesmo correndo o risco de encontrar torneira pingando e metro e meio de papel higiênico atravessando o chão do banheiro.
Com o avançar da idade das crianças, programas impensáveis começam a fazer sentido. Tem alegria maior para um pai torcedor do que levar o moleque ao jogo? Isso é um deleite que só o tempo, este velho sábio, traz. E quando rola uma festa do pijama justo na sexta à noite, dia para um programa adulto, mas não havia ninguém para olhar a gurizada? Bênção. Eu, infelizmente, ainda não usufrui dessa coincidência feliz porque a caçula é muito pequena para tanta liberdade. Corro o risco de termos que ir buscá-la de madrugada por causa de saudade. A minha saudade, aliás. A não ser que a festa do pijama seja na porta ao lado, mas isso aqui não é indireta para os vizinhos.
Mesmo sem festa do pijama que sirva para as duas filhas, sinto que minha liberdade retorna aos poucos para mim, como sobras de um banquete que não terminou.
Naquela tarde de domingo, tudo estava tranquilo em casa. Crianças brincavam juntas. O marido assistia ao jogo. O sol da Primavera entrava pela janela com o canto dos bem-te-vis. A cama desafiava meu cansaço: dormir ou ler?
Dormir seria ousadia demais. A Lei de Murphy no artigo sobre Mães Cansadas diz que, se você adormecer sem um plano de comum acordo com os integrantes da casa, a chance ser acordada nos primeiros dez minutos da soneca é altíssima. Mãe dormindo desperta necessidades adormecidas nos filhos. Melhor ler. É menos arriscado. Me recostei nas almofadas e senti como poucas vezes meu corpo se entregando ao colchão. Parei para apreciar ao longe o canto dos passarinhos e pensei em chamar as crianças para ouvir também.
"Não!", gritou minha consciência. "Que mania! Comece a ler".
"Mas eu estava apenas curtindo este momento", pensei, tentando me justificar.  
Não ouço as meninas. Estranho. O que estarão fazendo? Retomei a leitura. Parei sem concentração. Elas crescem, interagem e instantes como este, em que fico só com meus pensamentos, começam a acontecer com mais frequência. Mesmo raros, brindam certas tardes preguiçosas, quem diria. Não temos compromissos, hora, obrigações, nada. Estico os lábios num sorriso tímido de satisfação. Olho de novo pela janela. Os passarinhos continuam cantando. Devem estar felizes como eu. Leio. Minha mente foge, encantada com a harmonia e a quietude das crianças. Quando tudo é paz, a mente agita. Shhhhh. Tento em vão acalmá-la. Mas que estarão fazendo as crianças? Outro dia fizeram desenhos rupestres no chão da varanda com giz de cera e acharam o máximo ter que limpar depois. Estarão brincando com água e molhando o banheiro todo? Ameaço levantar mas minha consciência intervém novamente.
“Para com isso, você não precisa ir lá checar. Se você aparecer, é capaz de estragar tudo. Elas começarão a disputar sua atenção e já era o momento de ficar a sós consigo mesma. Anda, volte a ler“.
E assim, dessa batalha íntima entre resistir e me entregar à tentação de ver o que afinal de contas estava deixando as crianças tão quietas, vence a leitura. Onde eu estava mesmo? Melhor voltar ao início do capítulo para entender melhor o que estava sendo...
"Uóóóóóóóóó".  
Duas meninas entram correndo quarto adentro. A mais velha imitando a sirene de uma ambulância empurra a irmã - com cara de vítima - sentada no carrinho de boneca.
"Caramba", penso, "como essa geringonça de plástico ainda não quebrou?"
Não digo nada. Apenas observo a ambulância frear e estacionar diante do espelho.
"Uóóóóóó. Irrrrrrr".
(barulho de freio) 
 Pesco o seguinte trecho do diálogo que segue. 
"Meu Deus, Carol, isso parece grave!", anuncia a menina de 7 anos.
"É grave?" - pergunta a pequena de 4.
"Mamãaaaaaeeee", a criança grita, a um metro de mim.
"Hum?"
A dez centímetros de distância, a paramédica-mirim observa o lábio rachado e seco da irmã.
"Temos que botar um band-aid nisso!", propõe a socorrista na ambulância improvisada.
"Filha, não se coloca band-aid na boca", intercedo, antes que a ideia de jerico prospere.
"Mamãe, é grave?", pergunta Carol.
"Não é grave. É só um lábio rachado. Mas não é para botar band-aid, ok?", digo, dando a segunda opinião médica para o caso.
"Passa manteiga de cacau fingindo que é remédio", receito, enfim.
Os olhos da pequena se iluminam. Os da mais velha escurecem.
"Eu posso também?"
"Pode"
"Mas é manteiga..." - ela diz, quase miando.
"Não é manteiga de leite, é de cacau, e cacau você pode"
"Oba!" - ela responde, exultante com o tratamento liberado.
Depois elas pedem pra pegar algodão molhado e desistem do band-aid. Um curativo de mentira é feito e a ambulância vai embora com a paciente lambuzada de manteiga de cacau junto com sua enfermeira que, solidária, passou antes em si mesma o remédio receitado.
Uóóóóóóó.
O motivo que leva especialmente as mães a não saberem aproveitar seus raros momentos de quietude e solidão ainda são desconhecidos pela Ciência. Casos descritos são muitos. Uma amiga não via a hora de usufruir do primeiro fim de semana inteiro sem marido e os três filhos. A pressão era grande e vinha dos amigos, dos colegas de trabalho e da própria família. Aproveita, aproveita! Ela não só não soube o que fazer o dia todo sem os quatro como teve insônia e amanheceu um bagaço no dia que eles voltaram para casa. Outra amiga caiu doente na primeira semana de férias do filho com o pai, de quem é separada. Uma outra amiga, professora universitária, relata dificuldade semelhante quando viaja para um congresso a trabalho. Liga toda hora pra casa e não relaxa.
Desprender-se da rotina alegre, barulhenta e estafante em torno dos filhos é como um mergulho em profundidade. Não se pode começar a aventura já pensando em emergir. Nem se deve afundar sem um certo preparo. É útil saber o que se vai encontrar lá embaixo. Levamos um tempo para nos acostumar ao silêncio dos peixes, à falta de algazarra no fundo do mar, onde a luz do sol chega fraca. Da mesma forma, deveríamos retornar aos poucos à tona, esperando o corpo se acostumar com a expansão das demandas que, como o oxigênio sob pressão, estavam temporariamente comprimidas durante o mergulho na solidão inesperada.
Mergulhar rápido demais nessa paz ou dela sair de supetão provoca uma espécie de embolia nas ideias. Obstrui nossa capacidade de aproveitar. Dá tilt. Vai entender.

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