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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Trabalho infantil. ‘Não quero fiscalizar trabalho em matadouros porque não aguento’. Entrevista com Marinalva Cardoso Dantas


IHU - Unisinos
Adital


"Já faz 20 anos que nós estamos combatendo o trabalho infantil. Até 2015 não será possível cumprir a meta de erradicar o trabalho infantil no Brasil, porque se em 20 anos ainda não conseguimos, como em um ano e meio vamos conseguir?”, diz a auditora fiscal do trabalho.

A venda de castanha de caju artesanal, bastante frequente no Nordeste brasileiro, é uma das atividades que envolve o trabalho infantil no país. No município de João Câmara, no Rio Grande do Norte, mais de 90 crianças foram encontradas em situação de trabalho infantil, com o agravante de desistirem de frequentar a escola a partir do quinto ano de estudo. De acordo com a fiscal do trabalho, Marinalva Cardoso Dantas, que há quase dez anos fiscaliza o trabalho infantil na região, as crianças fazem parte de uma comunidade de descendentes de índios Potiguar, que há aproximadamente 30 anos está envolvida com a atividade de quebrar castanhas. "Nós nos deparamos com essa situação de trabalho infantil, na qual as crianças trabalham dia e noite, com exceção de sexta-feira, dia em que entregam a produção para o atravessador, e nos fins de semana, mas ficamos de mãos atadas, porque as famílias incentivam o trabalho”, menciona.

Segundo ela, "muitas crianças e adultos são analfabetos (...) e as famílias têm poucas condições financeiras, moram em casas de taipas. (...) Por conta da seca no Nordeste, as famílias recebem baldes de água, mas como utilizam muita água para apagar o fogo das castanhas ao quebrá-las, ficam privadas de água para tomar banho, porque a produção é a sobrevivência delas”. Marinalva relata que as famílias recebem o incentivo do Programa Bolsa Família "pelo fato de as crianças frequentarem a escola, mas o problema é que as crianças não estão sendo alfabetizadas nem aprendendo, porque trabalham durante a madrugada até a hora de ir à escola. Então, acabam aproveitando o período em sala de aula para dormir. Trata-se de um ciclo que não tem saída, porque as famílias acham que é certo as crianças trabalharem, pois ao menos estão protegidas das drogas e de delinquências”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Marinalva comenta a situação do trabalho infantil no Nordeste e enfatiza que "o combate à pobreza não está se mostrando eficiente no sentido de combater o trabalho infantil, porque não há uma punição para os pais que, apesar de ganharem uma ajuda do governo para não colocarem seus filhos no trabalho, continuam permitindo que as crianças trabalhem, e nada acontece”. E dispara: "Como eles vão deixar de explorar seus filhos se continuam recebendo bolsas, incentivos financeiros?”

Marinalva Cardoso Dantas é graduada em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Atualmente é auditora fiscal do trabalho e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador.

Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a situação das crianças que trabalham na quebra de castanha de caju no interior do Rio Grande do Norte?
Marinalva Cardoso Dantas – O Rio Grande do Norte é um grande exportador de castanha de caju, mas o estado também produz a castanha artesanal, que é usada em alguns povoados e vendida para a rede de turismo do Nordeste. Atravessadores levam as castanhas para famílias de descendência indígena, que vivem em povoados do interior. Essas famílias desenvolvem a atividade de quebrar castanhas há cerca de 30 anos, mas nós descobrimos esse povoado, com o Ministério do Trabalho, há menos de 10 anos. Nós nos deparamos com essa situação de trabalho infantil, na qual as crianças trabalham noite e dia, com exceção de sexta-feira, dia em que entregam a produção para o atravessador, e nos fins de semana, mas ficamos de mãos atadas, porque as famílias incentivam o trabalho.

Muitas crianças e adultos são analfabetos. Encontramos num barraco mãe, filha e netos, todos analfabetos e trabalhando. Então, trata-se de uma situação que está se perpetuando. Essas famílias têm poucas condições financeiras, moram em casas de taipas, e só recentemente estão sendo construídas casas de tijolos para elas. Por conta da seca no Nordeste, as famílias recebem baldes de água, mas como utilizam muita água para apagar o fogo das castanhas ao quebrá-las, ficam privadas de água para tomar banho, porque a produção é a sobrevivência delas.

As famílias recebem o benefício do Programa Bolsa Família pelo fato de as crianças frequentarem a escola, mas o problema é que as crianças não estão sendo alfabetizadas e aprendendo, porque trabalham durante a madrugada até a hora de ir à escola. Então, acabam aproveitando o período em sala de aula para dormir. Trata-se de um ciclo que não tem saída, porque as famílias acham que é certo as crianças trabalharem, pois ao menos estão protegidas das drogas e de delinquências.

Ao longo desses anos, encontramos mais de 90 crianças trabalhando nessa atividade. Essa situação já foi divulgada em vários programas de televisão e em outras mídias, e mesmo assim as crianças continuam quebrando castanhas, com as mãos impregnadas de líquido da castanha de caju – LCC. Elas retiram esse líquido das mãos com água sanitária, porque não podem ir para a escola com as mãos pretas, e aí a pele fica tão fina, que somem as impressões digitais. É possível recuperar as impressões digitais se elas ficarem um tempo sem realizar essa atividade, mas o caso é que continuam trabalhando com isso.

Nós estamos trabalhando com o promotor do município de João Câmara, o procurador do trabalho, o juiz da Comarca, a prefeitura e a Funai, já que descobrimos que os trabalhadores são descendentes de índios Potiguar, os quais acreditávamos que estivessem dizimados. Estamos verificando quais programas do Ministério do Trabalho e dos governos federal e estadual podem ajudar essas famílias a mudarem de situação. A única diversão desse povo é juntar um dinheiro para ir à Romaria, em Juazeiro do Norte, ver o padre Cícero.

IHU On-Line - Quem são esses atravessadores que entregam as castanhas às famílias?
Marinalva Cardoso Dantas – Os atravessadores são pessoas que vendem as castanhas para algumas empresas do ramo turístico da região. Em todas as bancas de artesanato se vendem as castanhas de João Câmara, ou em qualquer estado do Nordeste.

IHU On-Line - Quais são as propriedades do óleo líquido da castanha de caju - LCC, que faz com que as digitais das crianças desapareçam?
Marinalva Cardoso Dantas – O LCC é um combustível muito procurado em alguns países da África. Ele é tão forte, que é utilizado para assar a castanha de caju. Na indústria se utiliza a casca da castanha como combustível para incinerar a castanha.

IHU On-Line - Como tem ocorrido a fiscalização desse trabalho ao longo dessa década? O Ministério do Trabalho conseguiu alterar a situação de trabalho infantil?
Marinalva Cardoso Dantas – Nossa principal interferência foi ter conseguido inserir as crianças em escolas, porque muitas não estudavam. De modo geral, as famílias acham que elas não aprenderão nada e é melhor trabalhar do que estudar. Nem sempre essas famílias conseguem obter uma renda de um salário mínimo e muitas vezes elas ficam devendo dinheiro aos atravessadores, quando encontram castanhas ruins, porque os atravessadores só compram as castanhas boas.

Realizamos um trabalho de conscientização dos pais, no sentido de mostrar que é importante as crianças frequentarem a escola. Apesar disso, ficamos tristes, porque as crianças estão indo à escola, mas não estão aprendendo. Na fiscalização que realizamos no mês passado, encontramos adolescentes de 13 a 15 anos que desistiram da escola sem ter aprendido a ler. Eles também desistem porque as escolas que existem na comunidade só oferecem ensino até a quinta série, de modo que, para continuarem estudando, precisam ir para a cidade, e a família resiste ao fato de eles terem de sair da comunidade para estudar. Como se trata de uma interferência familiar, e a família tem o poder familiar, o Ministério do Trabalho não pode intervir. Temos dificuldade de entregar para os pais um termo de afastamento do trabalho, porque as crianças trabalham no local onde moram. Se os pais dizem que elas podem trabalhar, quem vai dizer o contrário? Estamos preparando um termo de afastamento de todas as crianças que trabalham, o qual será entregue ao promotor público, que decidirá como afastar essas crianças dessa situação.

IHU On-Line - Em que consiste seu relatório acerca do trabalho infantil entregue ao Conselho Tutelar da cidade?
Marinalva Cardoso Dantas – Aponto a resistência das famílias em aceitar que as crianças saiam de casa para estudar, porque elas precisam de mão de obra para garantir o sustento da família. Inclusive, uma criança é destinada a ser babá dos menores, ou seja, tem a questão do trabalho doméstico inserido nessa atividade. Se a criança estivesse dando um auxílio aos pais para cuidar dos irmãos, seria uma coisa, mas ela deixa de ir à escola para cozinhar, cuidar da casa e dos irmãos mais novos. Então, elas fazem tudo o que uma doméstica faz, mas para as famílias.

IHU On-Line - Que outras atividades envolvem o trabalho infantil no Rio Grande do Norte?
Marinalva Cardoso Dantas – As atividades em matadouros são uma das coisas mais terríveis da região, porque as crianças ficam extremamente doentes por conta da atividade.

IHU On-Line - Que outras atividades envolvem trabalho infantil no Rio Grande do Norte?
Marinalva Cardoso Dantas – As atividades em matadouros são uma das coisas mais terríveis da região, porque as crianças ficam extremamente doentes por conta dessa atividade. De acordo com o relatório do Conselho Tutelar, quando o boi se solta, ou quando dá "coices”, atinge as crianças. Já foram registrados muitos casos de crianças que ficaram desacordadas depois de serem atingidas pelo animal, casos de crianças que assistiram mortes, pessoas matando outras dentro do matadouro. Esse é um ambiente tão violento, que poucas pessoas conseguem chegar perto. Alguns colegas meus dizem: "Não quero fiscalizar matadouros porque não aguento”. Da mesma forma, a polícia e os jornalistas não gostam de ver esses casos. Trata-se de um ambiente muito violento, com cheiro de fezes, de sangue. Não é um lugar fácil de esquecer, ainda mais quando você vê que crianças tão pequenininhas estão lá, com os pés enfiados em fezes, em sangue. É horrível, o pior cenário que eu já vi relacionado ao trabalho infantil.

IHU On-Line - Como solucionar essa situação de trabalho infantil no país, seja na plantação de cana-de-açúcar, quebra de castanha de caju, trabalho doméstico etc.?
Marinalva Cardoso Dantas – Hoje é difícil encontrar crianças e adolescentes trabalhando em lavouras de cana-de-açúcar, porque quando o Brasil resolveu combater o trabalho infantil, em 1992, essa foi uma das primeiras atividades a serem combatidas. Em uma fazenda, encontrávamos 20, 30 crianças cortando cana, cheias de fuligem da cabeça aos pés. São crianças que gastaram a saúde ajudando os pais para ganhar um salário mínimo.

Conforme o Estado foi combatendo o trabalho infantil nas lavouras de cana-de-açúcar, começou a haver uma espécie de incentivo dos canavieiros para manter as crianças no trabalho. Houve casos em que fizeram sorteios de motos para aquele que fosse o melhor cortador de cana. Então, o que aconteceu? Quando esses meninos cresceram, foram para o corte como adultos, mas já com a saúde muito abalada, e muitos começaram a morrer de exaustão, porque não aguentavam o trabalho.

Outra atividade recorrente no Rio Grande do Norte era a pesca da lagosta. Muitos meninos morriam mergulhando com uma mangueira e compressor para respirar apenas pela boca, tentando pegar lagostas. Eles mergulhavam 30, 40 metros de profundidade. Muitos ficaram paraplégicos. Também há crianças trabalhando na Feira Livre do Nordeste, que é associada ao matadouro. Crianças que trabalham no matadouro, no dia seguinte estão na Feira Livre, local para onde vai a carne que elas ajudaram a tratar. Nesta feira, elas trabalham como "carretos”, carregando carrinho de mão, vendendo ou cortando a carne.

IHU On-Line - O Brasil se comprometeu a erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2015. Como vê a postura do Estado brasileiro nesse sentido?
Marinalva Cardoso Dantas – Já faz 20 anos que nós estamos combatendo o trabalho infantil, daqui a um ano e meio não será possível cumprir essa meta de erradicar o trabalho infantil no Brasil, porque se em 20 anos ainda não conseguimos, como em um ano e meio vamos conseguir? Em 1992, existiam aproximadamente nove milhões de crianças trabalhando e, em pouquíssimo tempo, esse número foi reduzido pela metade, ou seja, retiramos cinco milhões de crianças do trabalho. Depois dessa conquista, a situação foi ficando mais difícil e o número de crianças envolvidas com o trabalho infantil foi sendo reduzido cada vez mais lentamente.

O combate à pobreza não está se mostrando eficiente no sentido de combater o trabalho infantil, porque não há uma punição para os pais que, apesar de ganharem uma ajuda do governo para não colocarem seus filhos no trabalho, continuam permitindo que as crianças trabalhem, e nada acontece. Como eles vão deixar de explorar seus filhos se continuam recebendo bolsas, incentivos financeiros?

IHU On-Line - Essa estagnação que você aponta é muito por conta das situações das famílias?
Marinalva Cardoso Dantas – As famílias continuam colocando seus filhos para trabalhar, apesar de já ter sido demonstrado que apenas um terço das famílias pobres coloca seus filhos para trabalhar. Então, a pobreza não é um fator determinante, porque se dois terços deixaram de explorar seus filhos, então a pobreza por si só não é motivo suficiente para as crianças trabalharem. As pessoas dizem que se trata de uma questão cultural, como se estivessem dizendo: "deixa pra lá que não tem jeito”. Mas a OIT é clara nesse sentido ao dizer que nenhum país pode alegar questão cultural, religiosa, situação econômica ou política para continuar explorando o trabalho infantil.

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