sábado, 4 de janeiro de 2014

Século 21 em ação: novas famílias constroem uma sociedade alternativa

Jornal do Brasil
Cláudia Freitas
Casais sem filhos; pessoas morando sozinhas apesar de estarem numa união estável; três gerações sob o mesmo teto; famílias homoafetivas; mães sozinhas com filhos; pais sozinhos com filhos; amigos morando juntos; netos vivendo com os avós; famílias do “meu, seu e nossos filhos”. Essas formações são apenas algumas das muitas que compõem o moderno mosaico da família em todo o mundo. Um estudo apresentado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no último dia 20, sobre Sub-registro de nascimento, mostrou que o perfil da família brasileira continua evoluindo, no ritmo dos novos tempos.
Na série de reportagens do JB, damos continuidade à exploração das novas tendências do mundo que se consolidam com o tempo e que comprovam que o "futuro", simbolizado pelo século 21, está cada vez mais presente.
A pesquisa do IBGE detalha aspectos que justificam as mudanças sociais mais profundas e que são reflexos dos ambientes familiares. Os avanços na medicina, as reestruturações da legislação e a quebra de muitos preconceitos são elementos que vêm motivando os novos passos da família. Os dados recentes mostram que as mulheres estão sendo mães com mais idade, após os 30 anos, apesar do percentual de nascimentos em que a mãe tem até 15 anos de idade permanecer estável no país.  A taxa de nupcialidade legal, que representa o número de casamentos para cada mil habitantes de 15 anos ou mais de idade, cresceu na última década, passando de 5,6‰ em 2002 para 6,9‰ em 2012. E o que mais chamou a atenção dos pesquisadores foi o crescimento da taxa de nupcialidade que ocorreu no grupo feminino, mas com as mulheres da faixa etária entre os 30 e 34 anos, passando de 11,5‰ em 2002 para 20,2‰ em 2012. Os números deixa evidente o aumento da idade média das mulheres ao casar.
Outra mudança identificada no estudo do IBGE diz respeito ao padrão social familiar. Agora, em um a cada quatro casamentos a mulher é mais velha do que o homem. A proporção de casamento em que a mulher tem idade maior que a do homem é crescente, passando de 20,7% em 2002 para 24,0% em 2012, dado registrado pelo instituto em todas as grandes regiões do país. E quanto aos divórcios, a taxa contabilizada pelo número de registro de divórcios para cada mil pessoas de 20 anos ou mais de idade foi de 2,5 ‰, a segunda maior desde 2002. Além de reduzir o tempo médio transcorrido entre o casamento e o divórcio, que antes era de 17 anos, em 2007, passando para 15 anos, em 2012. Para o coordenador de População e Indicadores Sociais do IBGE, Cláudio Dutra, as novas possibilidades legais para o divórcio podem ter ajudado a formalizar situações em que já havia dissoluções informais.
Acompanhar e registrar as mudanças da família brasileira tem sido um grande desafio para o IBGE. O Censo de 2010 listou 19 laços de parentesco que se formaram, contra 11 em 2000. Os lares modernos somam 28,647 milhões, ou seja, 28.737 a mais que a formação clássica. O estudo concluiu que a família brasileira se multiplicou, deixando para trás o modelo convencional de casal com filhos. As combinações são as mais diversificadas possíveis e proporcionais ao desejo de encontrar a felicidade em uma relação a dois. A partir desse conceito, encontramos os casados que residem em casas separadas e as crianças que moram em duas casas diferentes; as famílias homoafetivas, que já representam 60 mil e são oficializadas do ponto de vista legal, e sendo a mulher representante de 53,8% dos lares nesse arranjo familiar; as mulheres que vivem sozinhas e representam cerca de 3,4 milhões em todo país; há ainda 3,5 milhões de homens na mesma situação; além das 10,197 milhões de famílias em que só há mãe ou pai; e tem ainda aquelas pessoas que dividem o mesmo teto, mas não têm nenhum laço familiar e se unem por uma conveniência financeira, apenas para dividir o aluguel, são os chamados "conviventes" e representam 400 mil lares.
Uma pesquisa de percepção divulgada em dezembro pela ONG Rio Como Vamos, com base no Censo 2010, detalhou uma das mudanças mais importantes no modelo tradicional familiar e que se tornou evidente nos últimos anos na cidade do Rio de Janeiro: o papel do jovem como chefe de família. O Censo de 2000, mostra que havia 9.230 jovens com 19 anos ou menos chefes de domicílio. O estudo da ONG destaca que as melhores situações eram nas regiões de Vila Isabel (145 jovens) e Tijuca (178) e as piores nas regiões da Rocinha (243 jovens) e Complexo do Alemão (232 jovens). Já no Censo de 2010, o número de jovens totaliza 24.461 no município do Rio, significando um crescimento expressivo. As melhores situações estavam nas regiões de Copacabana (382 jovens) e Vila Isabel (385) e as piores na Rocinha (710 jovens) e Jacarezinho (242). "Nesse período de 2000 a 2010 o aumento foi de 192% na Rocinha", alerta o estudo da Rio Como Vamos.
O Censo de 2010 revela outro aspecto no perfil feminino, que interfere diretamente no número crescente de divórcios. As mulheres estão cada vez mais comandando os lares e não ficam mais presas a um casamento ruim. No Nordeste é mais evidente este quadro, com os domicílios comandados por mulheres, tanto na capital quanto no interior. Esse retrato pode ser visto de duas maneiras: tanto a mulher conduzindo a educação dos filhos e mantendo a casa sozinha, após uma separação, ou estando casada e responsável pelas finanças da casa. Nas estatísticas, as mulheres comandam 38,7% dos domicílios, em 2010, contra 24,9% registrado em 2000.
Modelos pré-concebidos ficaram no passado
O psicanalista Sérgio da Costa, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, explica que hoje em dia não há como adotar modelos pré-concebidos na formação familiar. As relações estão sendo "reinventadas" a partir de exemplos mostrados a todo instante pela mídia e pela própria sociedade, na busca pela felicidade no seio familiar. "A mídia vende as ideias de felicidade, que são adaptadas pelas pessoas e casais. Ou seja, passa pela constituição de cada sujeito, que tem as suas fórmulas e maneiras de colocá-las em prática. E assim, vão operando as mudanças constantes e novas combinações", esclareceu Costa.
Apesar da cristalização de algumas ideias, a sociedade já percebeu que o modelo tradicional familiar, aquele da união do pai, da mãe com os filhos, não garantem uma constituição psíquica boa. "Tanto que temos muitos casais se separando e em conflitos que refletem na educação dos filhos", lembrou o psicanalista. Na vivência clínica, Costa observou que as funções materna e paterna também não seguem mais a um padrão rígido, podendo ser exercidas independentes do sexo biológico. Numa família homoafetiva, por exemplo, o casal pode definir quem vai assumir cada papel no relacionamento e perante os filhos - "porque o mais importante é alguém estar presente assumindo as obrigações de uma mãe e de um pai", diz Costa.
Por outro lado, o psicanalista alerta para a “multiplicidade de Brasil”, o que pode comprometer a aceitação de uma ideia ou o seu ritmo de massificação de acordo com a região do país. "Existe o Brasil urbano e o rural, além das características culturais de cada região. Então, uma ideia bem aceita aqui no Rio pode demorar chegar a outras partes do país e vice-versa", disse Costa.  
Terapia ajuda famílias na adaptação dos novos modelos
Terapia familiar para superar as mudanças que chegam à sociedade numa velocidade cada vez maior. Essa é uma das propostas do Centro de Estudos da Família, Adolescência e Infância (Cefai), que funciona há mais de 20 anos num bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. As consequências das novas organizações familiares são tratadas pelos profissionais do Cefai, que buscam abrir espaço de diálogo entre os membros familiares para resolver os mais diversos conflitos. "Nós lidamos com pais separados, famílias homoafetivas, casais com guarda compartilhada. São muitos casos complexos que tentamos encontrar em conjunto um caminho saudável de convivência familiar", disse uma das diretoras do Cefai, a psicóloga e pedagoga Gilda D´Orsi Archer.
Para Gilda, o mais importante é a família aprender a lidar com as mudanças sociais e acompanha-las. Na convivência com as muitas famílias que passam diariamente pelo centro, Gilda notou uma evolução significativa no comportamento das mulheres, especialmente as de mais idade. "Muitas delas querem congelar seus óvulos. Elas estão aproveitando os avanços da medicina a seu favor", comentou a psicóloga. Além desse passo importante, a classe feminina está assumindo mais as responsabilidades financeiras, como mostrou os dados do IBGE.
Quanto às relações homoafetivas, Gilda disse que esse arranjo familiar é mais comum nos dias atuais e a criação de crianças por esses casais acontece de forma natural e pode ser muito saudável, por serem eles amorosos e dedicados aos seus filhos. "Não vemos consequências dos conflitos familiares ou dos arranjos familiares numa criança muito pequena. Com o tempo observamos que o seu desenvolvimento e a sua saúde psíquica dependem de cada família, não existe uma norma. Depende de muitos fatores, como o contexto familiar, a cultura dos membros daquela família. Todos esses pontos precisam ser estudados antes de qualquer julgamento", disse a psicóloga.
Um dos problemas mais graves, na opinião de Gilda, está relacionado aos casos de guarda compartilhada dos filhos. “Especialmente por ser um processo recente, muito novo para muitos casais e para a sociedade", explicou ela. Na guarda compartilhada, o filho do casal separado reside em dois ambientes ao mesmo tempo, na casa da mãe e na casa do pai. Segundo Gilda, num quadro dessa natureza, é necessário muito diálogo e organização, porque a criança passa a dividir os seus pertences em duas residências, além da distribuição dos compromissos diários, como escola e cursos. Ela aconselha os casais a evitar outro processo conhecido como "alienação parental", que pode ocorrer nessas situações e é altamente prejudicial à criança em pleno desenvolvimento mental e social.
Apesar da rotina estressante, Gilda consegue ver o lado positivo desse grande mosaico. Para ela, o homem passou a lutar mais pelo direito de ter o seu filho ao seu lado, característica que era mais da classe feminina. "Hoje ele assumiu que quer o filho ao seu lado e está se organizando para isso acontecer, nas tarefas domésticas e indo também à Justiça batalhar pelos seus direitos como pai", disse Gilda. E nesse processo de separação do casal, as crianças também amadurecem. "Ela passa a transitar entre o casal e cria o que chamamos de 'conflito de lealdade'. Ela tem medo de agradar mais um do que a outro. Na terapia ela descobre que pode ter os dois ao mesmo tempo e igualmente, mesmo o pai e a mãe estando separados. Assim ela cresce, amadurece os seus pensamentos e atos", esclareceu a psicóloga.
Mas para os casais que estão na minoria de casamento convencional, Gilda recomenda cautela com pontos fundamentais para a saúde do relacionamento a dois. O orçamento familiar geralmente é motivo de discórdia e deve ser organizado em conjunto, sempre lançando mão do diálogo. O canal para a conversa deve estar sempre aberto, inclusive para as discussões sobre filhos e aspectos culturais. E Gilda finaliza com um perfil familiar que ela observa no seu cotidiano, nas pesquisas e clinicando: "Atualmente, um casamento não precisa ser mais para a vida inteira. Pelos estudos, um casamento que dura em média 12 anos, já pode ser considerado bem sucedido. Após a separação cada um segue o seu caminho e ainda tem tempo de ter outro ou outros casamentos bem sucedidos, dependendo da idade, vivendo bem e melhor", disse a psicóloga.      
Mudanças sociais e de políticas públicas
As mudanças nos modelos familiares estão refletidas no cotidiano de cada pessoa e estimulando adaptações nas políticas sociais e públicas. Pelas estatísticas recentes, a taxa de fecundidade está caindo e a população demorando mais ficar mais velha. Na década de 40, a mulher tinha em média seis filhos, hoje esse número caiu para dois. Com isso, a população crescer mais devagar. Ao mesmo tempo, a mulher ingressou com força total no mercado de trabalho, desencadeando outros processos. 
Uma delas foi o seu relacionamento familiar, já que a sua independência financeira lhe deu segurança suficiente para não ficar mais presa a um casamento mal sucedido, levando a mudanças sociais profundas. As leis tiveram que, com o tempo, acompanhar os movimentos da família.

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