segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Roberto Saviano: “Arruinei minha vida”

O escritor italiano, autor do aclamado livro sobre a máfia 'Gomorra', volta com 'ZeroZeroZero', uma viagem pelo negócio da cocaína de um lado para outro do Atlântico


PABLO ORDAZ Roma
O escritor italiano Roberto Saviano. / BERNARDO PÉREZ
O sonho de qualquer jovem jornalista de garra deve parecer bastante com o perfil de Roberto Saviano: um olhar limpo e um bom olfato para descobrir as histórias, habilidade e simpatia para tratar com as fontes, valentia para se meter no olho do furacão e uma habilidade capaz de converter qualquer reportagem em boa literatura. Se, além disso, com 26 anos se consegue escrever um livro como Gomorra (Bertrand Brasil, 2008), que já teve mais de 10 milhões de exemplares em todo mundo, o sonho parece perfeito. Até que se lê a dedicatória de sua nova obra, ZeroZeroZero, uma viagem de quase 500 páginas pelo negócio da cocaína de um lado para outro do Atlântico que será publicado na Espanha (ainda sem data no Brasil): “Dedico este livro a todos os policiais de minha escolta. Às 38.000 horas que passamos juntos. E às que ainda teremos que passar. Onde quer que seja”. Esta conversa com Roberto Saviano (Nápoles, 1979) aconteceu no porão de um hotel de Roma. Logicamente, sob o olhar atento de seus guarda-costas.

Pergunta. Depois que a máfia napolitana o condenou à morte e o obrigou a se enterrar vivo, por que continuou escrevendo sobre os mesmos assuntos?

Resposta. Gostaria de responder à pergunta com uma frase heróica do tipo: contínuo escrevendo porque creio na verdade, porque não conseguiram me amedrontar, mas me sentiria um pouco ridículo porque dentro de mim isso não é a verdade. Ou melhor, porque a verdadeira resposta é: estou obcecado. Estou obcecado porque uma vez que me encontrei de frente com a história das máfias já não pude, fisicamente inclusive, resistir em segui-la. Sabia que se continuasse escrevendo minha vida iria piorar. Não só pela questão das ameaças, mas porque a maioria das pessoas citadas no livro tentariam me denunciar por difamação. Mas é mais forte do que eu. É uma espécie de vício. Uma mania. Não é o pensamento puro de: é justo lutar pela verdade. Porque estou totalmente convencido de...

P. De que foi um erro?

R. Digamos: eu não acho que seja nobre ter destruído minha própria vida e a vida das pessoas ao meu redor para buscar a verdade. De longe, pode parecer nobre: ah, que coisa mais bela. Mas eu, que o fiz, não sinto que seja nobre. E mais, digo pra mim: talvez poderia ter feito o mesmo, com o mesmo compromisso, com a mesma coragem, mas com prudência, sem destruir tudo. Mas fui impetuoso, ambicioso, e arruinei minha vida.

P. Até esse ponto?

R. Há que se levar conta que eu não posso dispor de minha vida sem pedir autorização. Nem sair quando quero, nem entrar quando quero, nem encontrar as pessoas que quero sem ter que escondê-las para que não sofram represálias. Eu, às vezes, me pergunto se não terminarei em um hospital psiquiátrico. Sério, mesmo! Eu agora tenho necessidade de remédios para seguir adiante e nunca tinha precisado. Não abuso deles, mas de vez em quando tenho necessidade. E não gosto nada dessa história. Por isso espero que isto termine algum dia.

P. Valeu a pena então pagar um preço tão alto?

R. Não. E sei que quando digo isso alguém pode pensar: que covarde. Vale a pena buscar a verdade e vale a pena cavar até o fundo, mas se protegendo. Meu drama interno é: poderia ter feito tudo isto mas sem pôr tudo em risco. Porque, qual é o problema aqui? Se você se coloca um objetivo, a verdade, a denúncia, ou qualquer outra coisa de tua vida, converte-se em um monstro. Um monstro. Porque todas as suas relações humanas e profissionais estão focadas em obter a verdade. Talvez o fim seja nobre, uma coisa generosa, mas tua vida não se converte em generosa. As relações convertem-se em terríveis.

P. Por que?

R. Porque você decidiu sacrificar tudo em nome da verdade. Quando comecei a fazer isso não me dei conta. E no livro digo: não vale a pena, de forma nenhuma, renunciar à própria felicidade por um objetivo que considera superior. Vale a pena fazer o que se deve mas buscando se defender.

P. Você se propôs a voltar atrás? Escrever sobre outros assuntos?

R. É difícil. Talvez o tente. Mas o problema verdadeiro é que quando se chega a este ponto de notoriedade, se você volta atrás arrisca a jogar fora tudo o que fez. E aqui surge a voz da ambição: como vou atirar ao mar todo este trabalho, tudo o que consegui? E depois surge outro debate: tudo isso me aprisiona, mas ao mesmo tempo dá sentido a minha vida. Embora também tenha diante de mim o empenho de que não só sou um escritor de crime. Quero fazer literatura.

P. Em ZeroZeroZero conseguiu.

R. Sim, acho que sim, meu objetivo é escrever de coisas reais com estilo literário. Foi difícil, porque quando se fala de América Latina daqui se tende a ver só a parte sangrenta, do massacre, como se tudo fosse um grande caos. Eu, por outro lado, tentei demonstrar a ordem mexicana, não a desordem mexicana. A ciência do assunto. Não foi fácil.

P. Que similitudes há entre o crime organizado no México e na Itália?

R. Muitíssimas. Mais que entre a Colômbia e a Itália. Porque a estrutura, o gerenciamento do território, é muito parecida. Por isso comecei o livro com uma lição que dá o chefão italiano aos latinos de Nova York. Substancialmente, os adverte: se vocês querem o poder têm que saber que algum dia pagarão por ele. Se alguma vez pensaram que podem ostentar o poder e depois sair livres, estão equivocados. Esta é a filosofia da infelicidade que está na base de todas as organizações.

P. Por causa do livro regressou a Nápoles depois de muitos anos. Que sensação teve?

R. No início tinha medo. Tentei inventar qualquer desculpa. Tinha preocupação em não incomodar a cidade, as pessoas, que dissessem chega. Mas encontrei com milhares de jovens felizes de me saudar, pessoas que queriam me tocar e me acariciar, que me apanhavam as mãos e me diziam: “Tranquilo, está aqui”. Foi emocionante. Antes só voltava para ir aos tribunais.

P. Como encontrou sua cidade?

R. Pior. A crise a atingiu ainda mais. O sonho do napolitano continua sendo sobreviver e emigrar.

Todas as palavras de Saviano, mesmo as mais dramáticas sobre sua vida, foram pronunciadas com um sorriso nos lábios.



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