quinta-feira, 5 de junho de 2014

Linchamentos, espancamentos e “correções”: a violência sem rosto e a perda do autocontrole individual e coletivo

Adital

Por Maria Dolores de Brito Mota e Julia Mota Farias

Manifestações crescentes de "fazer justiça com as próprias mãos” são indicadores de uma falência das instituições públicas responsáveis pelo bem-estar coletivo e de um enfraquecimento da agência de autocontrole individual, o superego. Historicamente essa agência de autocontrole foi instituída à medida que as sociedades foram concentrando o uso da violência física e as armas sob uma única autoridade que exercia o controle de sua aplicação no espaço social forçando que os desarmados controlassem e refletissem sobre as consequências da própria violência, impondo um autocontrole de sua agressividade, segundo nos diz Elias em seu Processo Civilizatório (v.2). Mas, o que vemos cada vez mais são as pessoas explodindo em violências. Esse é um debate que precisamos fazer urgentemente.

Os fatos descritos a seguir, que ocuparam noticiários, não estão isolados: o linchamento de Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, no ultimo dia 2 de maio, por dezenas de moradores de uma comunidade em Guarujá (São Paulo), motivado por uma imagem e acusação publicada num site, é um crime brutal que expressa uma irracionalidade difícil de entender.

Outros atos mostram esse mesmo tipo de violência ligada a uma onda de justiçamento. Dia 31/01, um adolescente de 15 anos foi encontrado nu acorrentado pelo pescoço a um poste com uma tranca de bicicleta após ser agredido a pauladas por um grupo encapuzado, no Rio de Janeiro; um outro rapaz de 26 anos foi amarrado com cordas a um postedia 13/ 02 na cidade de Itajaí, após assaltar uma lanchonete; outro adolescente suspeito de praticar furtos na zona sul foi espancado, ferido com faca e amarrado nu a um poste na Avenida Rui Barbosa, no Flamengo dia 02/03; dia 06/05 um jovem de 23 anos foi amarrado e espancado por moradores no bairro de São Marcos, em Salvador, acusado de matar uma mulher grávida há cinco meses, após a vítima denunciá-lo por ter roubado o celular.

Essa violência dita "justiceira” não esta tão distante de outro tipo de violência, aquela que elimina, que assassina, pessoas que estão de algum modo a incomodar, a contrariar ou a evidenciar uma falta, um desejo insatisfeito ou impossível. Como no assassinato do menino Leandro em 04/04 pela madrasta, e no qual houve a participação da assistente social Edelvânia Wirganovicz, em troca de dinheiro que usaria para o pagamento de seu apartamento. O que ela tinha contra ele? Declarou que aceitou a proposta porque não haveria sangue. Ainda podemos lembrar o caso da adolescente que foi espancada dia 09/04, em Limeira – SP, por colegas da escola, porque era bonita. Pensamos que esses fatos nos desafiam a refletir as bases da nossa civilização e o vínculo social.

Sociedades em violências – uma crise do sujeito social ou êxito do capital?
As formas de violência crescem e se diversificam no mundo inteiro, levando estudiosos a pensarem em dissolução do vínculo social (Enriquez) e na emergência de uma violência excessiva, um mal radical que suprime o indivíduo e o próprio sentido da vida (Levinás). As sociedades e a civilização se constituíram, e só podem se constituir, quando indivíduos abdicam de certos aspectos de sua individualidade de modo a que todos possam existir, coexistindo. Não há vida humana fora de um contexto sociocultural. Mas, é a partir do século V que vai se construído o cidadão, o sujeito que tem direitos. Em um artigo inspirador Enriquez (2006) diz que "O sujeito de direito é, pois, um indivíduo considerado, respeitado frente a todos os outros e que está sob a proteção de uma lei semelhante a todos.” Esse sujeito usufrui de direitos, mas, também deve ser um ator que age, participa e decide.

O que ocorre com esse sujeito na civilização do capital, o reino do dinheiro, em que todos os valores foram submetidos a um único valor: o dinheiro? Vive a dissolução do vínculo social, pois o que importa é fazer dinheiro, identifica-se com as instituições a que está submetido, podendo usar inescrupulosamente os outros ou submeter-se sem críticas às estratégias financeiras e ao estado. É assim que, nas palavras do autor: "o mundo atual tende a tornar-se o do crescimento do desprezo, da generalização da desconsideração, do desrespeito, da recusa à diferença a que tem direito todo ser humano”.

Por um lado, isso tem estimulado o crescimento em alguns grupos uma busca de raízes, o prazer de estar junto, uma busca por comunidade. Por outro lado, isso também ao quebrar as ligações sociais, faz emergir sujeitos desvinculados, que cuidam apenas de si, que não se sentem parte da espécie humana, seja porque estão distantes da maioria que vive em processo de exclusão, pobreza e sofrimento, seja porque na condição de exclusão perdem toda a identificação com os que desfrutam condições de existência valorizadas e reconhecidas pela sociedade do dinheiro.

Essa dissolução do vínculo social resulta de uma falha das instituições ou expressa o resultado de uma forma de estruturação de relações sociais e de organizações que prioritariamente desenvolvem a regulação voltada para a preservação da sociedade do dinheiro e não da sociedade dos indivíduos? Sociedade essa que ao estimular o tudo se vende e tudo se compra, coloca os indivíduos no lugar de quem tudo pode (no momento que deseja). Uma ilusão, pois o indivíduo na condição de sujeito social não pode satisfazer totalmente seus desejos sejam emocionais, sexuais, de consumo, de liberdade, mas em acreditando que é assim que deve ser, ele recusa a se impor regulações, não luta tanto consigo para se restringir, mas luta contra os demais para um máximo desfrute de prazeres. Essa generalização da violência em formas brutais, não seria a expressão do êxito de uma sociedade centrada na submissão do individuo ao dinheiro, muito mais do que a falência de instituições de controle e de segurança social?

A violência das pessoas: maldade, descontrole ou o que?
Essa violência que assistimos é fruto de uma maldade humana ou uma manifestação comportamental do sujeito humano? Que significados podemos atribuir a ela?

A violência de acordo com Freud (1996) é um elemento da subjetividade do indivíduo. Os bebes viveriam uma violência primária representada pelo fato de não terem controle da satisfação de suas necessidades e nem da ausência da mãe. Mais tarde, entre os 3 e 6 anos a criança experimenta a frustração de perceber a separação entre ela e os pais, e neste momento começa a perceber que não é o centro do mundo, que o amor não é unicamente para si e que os pais não a podem proteger completamente do mundo.

É necessária a compreensão de uma distinção entre essa violência primária relatada por Freud e a atualmente vivenciada no nosso cotidiano e assistida a todo o momento nas mídias. Se entendemos que a própria constituição do sujeito é marcada por experiências violentas, por que nos afetamos com tamanha intensidade ao nos depararmos com os atuais acontecimentos que nos levam inclusive a questionar a dimensão humana do sujeito que os pratica?

A violência primária é caracterizada por uma relação com a alteridade promovendo sentimentos de frustração, de sofrimento ao sujeito que lhe provocam uma necessidade de reorganização, porém lhe concedem um reconhecimento perante o outro, inserindo-o na dimensão da lei social. Os fenômenos atuais nos apresentam algo que pode ser diferenciado como pensa Marin (1998), "uma violência enquanto emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos; uma experiência de excesso que visa o aniquilamento do outro, ataque ao sujeito, ataque ao social (p.79)”.

Algumas características da sociedade contemporânea como a excessiva valorização da realização pessoal, do individualismo, da autonomia e da incessante busca pela felicidade enquanto meta, contribuem para que os indivíduos sejam submetidos a relações cada vez mais marcadas pela dificuldade de uma imposição da lei social, uma vez que ninguém deseja assumir o papel de carrasco promovendo frustrações e ocasionando sofrimentos para alguém. Assim, apenas os bons sentimentos são valorizados e devem ser vividos por todos e, a submissão do outro, mesmo infante, na sociedade hedonista gera desconforto aos sujeitos e soa como equívoco.

Marin (1998) nos apresenta, então, que a dificuldade de se assumir a postura da lei, da autoridade castradora do desejo do outro, constituinte da subjetividade, caracterizada na violência primária, o que pode colaborar para a constituição de ações aniquiladoras, como meio para afirmação de singularidade na medida em que se fomenta a onipotência do sujeito frente aos seus desejos (desde os mais primitivos até aqueles construídos socialmente) conduzindo-o na crença de que vale tudo para destruir o objeto do seu incomodo, satisfazer suas necessidades, impor o Eu em busca de reconhecimento.

O contexto social marcado pelo estímulo a uma plena satisfação impulsiona em muitos indivíduos ações que eliminam os obstáculos postos entre o desejo e a satisfação, mesmo que estes obstáculos sejam pessoas: filhos, mulheres, pai, mãe, amigos, oponentes, adversários etc.

Nos saques que ocorreram em Recife durante a greve dos policiais no início desse mês de maio, nos dias seguintes os noticiários mostravam que pessoas que tinham participado estavam a devolver os objetos que haviam levado para suas casas. Alegavam que não sabiam como tinham feito aquilo, que não precisavam dos objetos, que foram levados pelos acontecimentos ao verem os outros fazendo... Assim, o ato violento, que viola acordos sociais não impede necessariamente a reflexão, o pensamento, à tomada de consciência sobre a violência e a ação reparadora. Mas essa sociedade hedonista e individualista tem contribuído para a formação de sujeitos sem culpa, guiados pela imediaticidade do seu desejo em diferentes e múltiplas formas de transtornos mentais e inadequação de convívio social.

Referências
FREUD, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. vol. II. (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
ENRIQUEZ, Eugène, O Homem do século XXI: sujeito autônomo ou individuo descartável? RAE-eletrônica, v. 5, n. 1, Art. 10, jan./jun. 2006
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
MARIN, Isabel. Sujeito, desamparo e violência. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, II, 3, pp.75-88. 1998.
[Maria Dolores de Brito Mota é socióloga, professora associada da UFC, pesquisadora do NEGIF-UFC e Julia Mota Farias é psicóloga, mestranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFC]

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