domingo, 10 de agosto de 2014

Um encontro que esperou 36 anos


Estela de Carlotto tinha 47 anos quando Laura, sua filha mais velha, desapareceu.
Era um triste triste dia florido de primavera de 1977. A Argentina já vivia mais de 20 meses de ditadura. Estela perdeu uma filha, mas não sabia que tinha um neto. Revirou o país em busca dela, e chegou a ser recebida pelo general Reynaldo Bignone quando este era figura importante do aparato de repressão – anos depois, ele seria presidente, o último da ditadura argentina –, mas a resposta foi “não lhe recomendo alimentar esperanças”.
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Estela de Carlotto, metade da sua vida levando a esperança de não morrer antes de encontrar seu neto. Foto de Aline Gatto Boueri.
Meses depois do conselho, encontrou uma jovem que havia sido libertada, depois de compartilhar um calabouço com Laura. Ela contou as torturas e humilhações sofridas por ambas, disse que Laura comia pouco mas resistia à violência. O mais emocionante: revelou que ela estava grávida, que o filho seria um menino e que se chamaria Guido, como seu avô.
Quando foi presa, Laura era estudante de História da Universidade de La Plata, e militante da Juventunde Peronista. Em agosto de 1978, os militares entregaram a Estela o cadáver da filha. “Foi um privilégio, eram poucos os familiares que podiam recuperar o corpo de familiar desaparecido, e ao mesmo tempo um choque. Tive raiva do mundo. Tive raiva de Deus, tantas orações e promessas… Mas logo passou, decidi não ter mais raiva de Deus, porque era culpa dos homens, e nem dos homens queria alimentar rancor. Só queria a verdade, reparação e justiça”.
Poucos meses antes de enterrar a filha, Estela havia começado uma organização com outras mães que buscava seus filhos. Algumas também sabiam de crianças e bebês capturados. Junto com elas, começou um longo trabalho de busca, principalmente dos netos. Vestiam panos ao redor da cabeça, e iam à Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, exigir o paradeiro das meninas e meninos. Eram as Avós da Praça de Maio.
Durante décadas, as Avós se dedicaram a buscar seus netos. Um trabalho, como disse Estela, sem rancor, movido pelo amor e o desejo de encontrar a verdade e a justiça, com muita paciência, criando banco de dados genéticos, sistema de informação, e contando com curiosidade dos jovens sobre seu próprio passado.
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As Avós da Praça de Maio nos primeiros anos da luta por recuperar os netos.
Muitos netos recuperados, principalmente nos últimos anos, chegaram até elas voluntariamente – assim como Guido. São jovens que atenderam ao chamado das avós: “se você tem dúvidas sobre o seu passado, procure-nos”. As Avós da Praça de Maio hoje apontam também a seus bisnetos. Livros infantis, palestras em escolas, e campanhas publicitárias que convidam os que hoje são pais e mães de outras crianças a conhecer seus pais e mães, suas avós e seus avôs.
Em 2011, Estela escreveu uma linda carta para Guido, que chegou aos meios de comunicação:
“Meu querido neto Guido,
Hoje você completa 33 anos. A idade de Cristo, como diziam, como dizemos nós, as velhas. Com essa inspiração penso nos Herodes que ‘te mataram’, no momento em que você masceu, ao apagar o seu nome, a sua história, os seus pais. A Laura (María), sua mãe, deve estar chorando nesse dia da sua crucificação e, de uma estrela, deve estar esperando a sua ressurreição à verdadeira vida, com a sua identidade real, recuperando a sua liberdade, rompendo as grades que te oprimem.
Querido neto, o que eu daria para que você se materialize nas mesmas ruas em que te procuro sempre. O que eu daria para poder te entregar esse amor que me sufoca depois de guardá-lo por tantos anos. Espero esse dia com a certeza de minhas convicções, sabendo que, além da minha felicidade por esse encontro, os seus pais, Laura e Chiquito, e o seu avô Guido no céu, nos darão um abraço apertado do qual nao nos vamos a separar nunca mais.
Sua avó,
Estela”
A boa memória de Estela levou ao reencontro com Guido, na tarde desta terça-feira (5/8). E com parte da história da filha. Na clandestinidade, Laura tinha um companheiro que a família não conhecia. Procurado pelos Carlotto, desaparecido pela ditadura, Oscar Montoya era o possível pai de Guido, segundo as reconstruções que a família pôde fazer do último ano de vida de Laura – grande parte dele em centros clandestinos de detenção.
Os Montoya doaram material genético para o eventual encontro com Guido. Essa tarde especial para Estela, também foi alegre para uma outra avó, que aos 91 anos recebeu um telefonema com a notícia. “Eu tenho um neto”.
114 abrazos
Antes durante e depois do anúncio, um canto com aquele ritmo mundialista que todos os brasileiros conhecem: “milico, decime qué se siente/ que hayamos encontrado a un nieto más/ te juro que aunque pasen los años/ siempre los vamos a buscar/ porque ahora somos más/ las viejas van a brindar/ y los pibes con nosotros van a estar”.
 Estela, a avó generosa, que ajudou a encontrar 113 netos antes que o dela aparecesse, elogiou a capacidade de “transformar a canção”. “Não gosto muito dessa coisa de ‘velhas’, mas enfim… somos velhas. Velhas do amor”.
Laura passou cinco horas ao lado do seu filho, antes do sequestro do bebê que apareceu hoje, aos 36 anos. Guido Montoya Carlotto é o neto número 114 de cerca de 500 que a ditadura argentina roubou de suas famílias, de suas histórias, de sua origem.
Ao anunciar o reencontro com Guido, Estela lembrou uma frase que costuma citar, de Laura, enquanto estava em cativeiro. “Minha mãe não vai esquecer o que vocês estão fazendo comigo”. E tinha razão, ela não esqueceu. E continuará não esquecendo, como deixou claro nas palavras que finalizaram a coletiva:
- Até o próximo neto!

Este texto foi co-escrito por Victor Farinelli, um dos titulares do blog, e a talentosa jornalista Aline Gatto Boueri, membro da equipe editorial da Revista Geni e correspondente do Opera Mundi em Buenos Aires, que esteve presente no anúncio do 114º neto.

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