Por Thais em educação 11/09/2014
Uma criança tirando a blusa e olhando por cima do ombro. Na outra foto, uma garota está deitada e olhando pra trás com as pernas abertas. Tem ainda a pose da alça da blusa caída. O que não se vê, em nenhum momento, são crianças sendo crianças: sorrindo, brincando ou correndo na praia.
Uma criança tirando a blusa e olhando por cima do ombro. Na outra foto, uma garota está deitada e olhando pra trás com as pernas abertas. Tem ainda a pose da alça da blusa caída. O que não se vê, em nenhum momento, são crianças sendo crianças: sorrindo, brincando ou correndo na praia.
Estamos falando de um ensaio da Vogue Kids (Primavera 2014), em que garotas são apresentadas em poses sensuais. “E não para vender somente as roupas, mas um estilo, uma estética que absorve a infância em função do consumo e da objetificação feminina”, como foi levantado no grupo de discussão do Think Olga nesta manhã.
Para falar sobre o tema, entrevistamos a advogada graduada pela PUC/SP e mestre em Direitos Humanos pela USP, Tamara Amoroso Gonçalves, que é integrante do CLADEM/Brasil, da Rede Mulher e Mídia e da Rede Brasileira sobre Infância e Consumo. Chegamos até ela através do projeto “Entreviste uma mulher”, também criado pelo Think Olga, e que pretende aumentar o número de mulheres entre as pessoas entrevistadas sobre os mais diferentes temas.
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Garatujas Fantásticas: Como você avalia a publicação dessas imagens em uma revista sobre moda e comportamento infantil?
Tamara Amoroso Gonçalves: Já há algum tempo a segmentação do mercado e mesmo do mercado midiático vem criando produtos cada vez mais específicos para cada faixa etária. Se por um lado isso não pode ser considerado necessariamente ruim ou problemático por si só, por outro é preciso ter muito cuidado com o que se veicula para crianças. Cuidado que pareceu faltar nesse editorial de moda. Há várias problemáticas subjacentes nesse caso:
- Trabalho infantil: é importante que as crianças tenham representação na mídia, para que sejam vistas e enxergadas pela sociedade. Ao mesmo tempo, a atuação como atrizes ou modelos mirins, embora possa parecer glamourousa, é uma forma de trabalho infantil. E como tal, deve ser questionado. Seria importante que enquanto sociedade concentrássemos esforços em promover a presença das crianças na mídia enquanto sujeito de direitos, em produções culturais que possam de alguma forma contribuir (ou pelo menos não prejudicar) para o seu desenvolvimento.
Nesse sentido, o próprio trabalho dessas meninas deve ser questionado. Como foi feito o ensaio? Em que medida isso interferiu em sua rotina escolar? Será que essas crianças de verdade estão sendo tratadas como sujeitos de direitos? Esse ensaio favorece a autonomia infantil? Me parece que não, pelas razões que vamos explorar melhor durante essa entrevista. Se o público alvo da revista são as crianças, seria importante que o conteúdo fosse adequado a elas. Se o público alvo são os pais, também é importante nos questionarmos que tipo de cultura aceita e incentiva que meninas sejam retratadas como mulheres adultas em imagens erotizadas.
- Erotização e objetificação de meninas: a hiper-erotização de mulheres e a sua representação como objetos sexuais é comum em nossa cultura permeada pelo consumismo e comunicação de massa. As feministas vêm lutando há muitos anos para mudar essa cultura, mas é um processo cultural e social complexo e cuja mudança não acontece de uma hora pra outra.
Há valores culturais muito profundamente arraigados que dificultam muitas vezes que enxerguemos isso tudo como uma violência. Há resistência. O Brasil é bastante conservador no que diz respeito a valores e costumes – vide recente pesquisa que diz que o Brasil se aproxima da Turquia nesse tema – mas paradoxalmente convive com a hiper-exposição das mulheres e de seus corpos, explorados enquanto objetos sexuais.
Quando praticamente majoritariamente retratamos as mulheres em imagens fortemente sexualizadas, estamos em alguma medida reduzindo as mulheres ao sexo. Mulheres têm sexualidade e têm desejos, mas são seres humanos e não meros objetos sexuais. Será que esses editoriais apresentam as mulheres como sujeitos desejantes ou como objetos de desejo?
Trazer essa problemática para o universo infantil é cruel ao antecipar e pré-moldar as crianças a se comportarem de um determinado jeito, extremamente limitado. É trazer os limites que muitas mulheres vivem na fase adulta para a infância. É pré-determinar um limite muito estreito para essas meninas representarem papéis de gênero também extremamente limitados, limitantes e sufocantes, condicionando-as a não extrapolarem esse papel.
Erotização de crianças e objetificação de meninas em produto de consumo. Como isso é tratado no Brasil e em outros países? É recorrente na indústria da moda e beleza, ou acontece em outras áreas também?
O primeiro passo para desumanizar um indivíduo é trata-lo como objeto. Quando focamos em partes do corpo e representamos mulheres por esses “pedaços de corpos” o que estamos fazendo é reduzindo-as a objetos, desumanizando-as. A desumanização é o primeiro passo para a naturalização da violência. Apenas para citarmos um exemplo da história recente, temos o nazismo como processo em que se nega a condição humana aos sujeitos e sabemos onde isso pode chegar.
Pode parecer longe demais, mas quando desumanizamos as mulheres e meninas, retratando-as como objetos, com foco em partes de seus corpos, estamos também abrindo caminhos para a banalização e naturalização da violência contra as mulheres. Claro que não é uma relação imediata direta. A sociedade de consumo atual e seus processos midiáticos são mais complexos que isso. Mas se nos acostumamos a ver mulheres como não inteiramente humanas, isso é um primeiro passo para não nos importarmos com a violência. E de fato, algumas fotos do catálogo convidam para a violência.
É possível observar que as meninas foram retratadas em posições “frágeis”, ou seja, a posição dos braços e pernas e a forma como o corpo está composto colocam essas meninas em um contexto de submissão. A expressão em seus rostos também não mostram alegria e diversão tão comuns em crianças, mas mostram languidão e quase um sofrimento, um tédio em relação a tudo que se passa ao redor. Elas não foram retratadas como crianças. Crianças correm, brincam. E isso é limitante para as futuras mulheres, que, segundo mostram dados de pesquisa, em nossa cultura “devem se comportar” se não quiserem ser estupradas.
É isso mesmo que queremos construir? Se vamos retratar meninas, porque elas não podem estar ativamente brincando? Porque não incentivamos nossas meninas a serem ativas, a tomarem a iniciativa, a serem donas de si e dos seus desejos?
Infelizmente isso não ocorre apenas no Brasil. Em um contexto de globalização e massificação de uma cultura extremamente comercial, as imagens de sexo vendem. Mas o que essa cultura tende a vender é esse sexo banalizado e desconectado de relações íntimas de afeto. Sem conservadorismos, o que eu quero dizer é que jogamos essas imagens para as crianças sem que elas tenham plenas condições de entender do que se tratam, sem que elas consigam processar essa informação.
Como na nossa sociedade conservadora sexo ainda é tabu, não falamos disso com as crianças. Não temos educação sexual nas escolas. Então as informações que boa parte das crianças recebem vem da grande mídia. E isso pode prejudicar o desenvolvimento de suas sexualidades, limitando-as a padrões e estereótipos de gênero extremamente rígidos. Isso não favorece escolhas racionais e nem a vivencia da sexualidade de forma plena, só promove a comercialização e a banalização dessa expressão de algo que deveria ser íntimo, divertido, gostoso.
Há diversos estudos na área da erotização dos corpos infantis e sobre os elementos que constróem essa imagem da criança na mídia. O que lemos é que elas estão perdendo parte da infância e entrando muito cedo no universo dos adultos e suas preocupações estéticas e comportamentais. Quais são as consequências disso?
A estratificação de gênero com a divisão de “coisas de meninos” e de “meninas” não é algo novo. No entanto, recentemente, o mercado tem contribuído fortemente para reforçar, reiterar e até exagerar nessas divisões. A apresentação dos rígidos estereótipos de gênero desde a primeira infância, por meio da difusão de produtos exclusivos para meninos e meninas está minando as possibilidades de construirmos uma sociedade mais justa e igualitária.
Se prestarmos atenção nas publicidades e mesmo nos conteúdos midiáticos para crianças – muitos deles na verdade mais parecem publicidade camuflada de conteúdo – observaremos que há sempre um apelo para a violência como representante principal da masculinidade e a delicadeza excessiva, doçura e em algum momento foco na aparência e na sexualidade das meninas como símbolos de feminilidade. Mas o ser humano é muito mais complexo que isso. Podemos ter ou não essas características, mas o que vem acontecendo é que as crianças estão recebendo primordialmente esse tipo de informação. E não sabem lidar com ela. E podem estar sendo incentivadas a considerar esses padrões como sendo os esperados de masculinidade e feminilidade, introjetando-os.
Isso favorece a assimetria de poder nas relações entre homens e mulheres, a violência conjugal, a discriminação. E esse processo não prejudica apenas as meninas. Prejudica os meninos também, que são forçados a se enquadrarem nesse padrão extremamente limitado de masculinidade e acabam sofrendo. A grande questão é que esse processo favorece uma relação entre os sexos onde os homens tendem a ter mais poder, mas isso não significam que não sejam também oprimidos pelo machismo.
Ao veicular imagens que antecipam fases da vida adulta, a mídia acaba por prejudicar o saudável desenvolvimento. Sem moralismos, crianças têm sexualidade e muita curiosidade sobre sexo. Mas o problema se instala quando a informação que elas majoritariamente recebem são perturbadoras porque não adequadas a sua faixa etária. Isso confunde as crianças e em uma sociedade em que, como já dito, sexo é tabu e não discutimos essas questões nas escolas, as crianças ficam literalmente perdidas e acabam tendo apenas informações permeadas por conteúdos comerciais.
Por fim, nesse caso específico, é preciso ainda observar que quando apresentamos fotos de crianças em posições erotizadas, estamos chamando atenção da sociedade para seus corpos e suas sexualidades ainda em desenvolvimento. Será que essas crianças têm estrutura mental e psíquica para lidarem com eventuais desejos de pessoas adultas? Parece-me que não. Portanto é extremamente injusto para com o seu processo de desenvolvimento representá-las de forma extremamente sexualizada e não nos preocuparmos em protegê-las de eventuais violências.
Enquanto uma parte da sociedade se revolta com a erotização da infância, outra defende que não há problema em oferecer às crianças maquiagens ou sutiãs e biquini com bojo. No meio disso tudo, muitos pais ou mediadores não têm uma opinião formada. Como você vê essa divisão na sociedade sobre o assunto?
É normal que crianças imitem coisas que os adultos fazem. Isso é uma forma pela qual elas aprendem comportamentos, elas processam sentimentos, emoções. Toda menina já vestiu roupas das mães, experimentou seus sapatos e maquiagens. Mas o que estamos vivenciando não é esse tipo de experiência. É a criação de produtos específicos para crianças que simulam um ambiente adulto.
Veja, um sutiã com bojo para uma criança de seis anos se coloca como um produto infantil, não algo que essa criança vá experimentar e brincar. Há quem diga que isso seria mais adequado porque é um produto pensado para crianças. Mas será que é mesmo? O que uma criança de seis anos precisa, de verdade?
Especialistas do mundo todo se unem pra dizer que ela precisa brincar livremente, de preferência com objetos que estimulem a sua imaginação. Um sutiã, um objeto adulto e em miniatura, me parece mais uma primeira forma de aprisionamento em estereótipos de gênero do que um brinquedo que estimule a imaginação. Crianças precisam de liberdade não de coisas que as limitem.
Como é possível ajudar a quem busca informação sobre o tema, mas não sabe por onde começar?
Bom, há hoje muitas pesquisas sobre o assunto. Mas para quem não tem interesse acadêmico, há muitos espaços por onde se pode começar. Há grupos de mães que se organizam em blogs e mesmo no Facebook para conversar sobre o tema e trocar informações. Eu acho que seria um bom começo.
O grupo de mães por uma Infância Livre de Consumismo, o seu blog, o pessoal do Mamatraca, do Cientista que virou mãe e tantos outros fazem esse papel. O Instituto Alana desenvolve, desde 2007, um belo projeto para lidar com o tema do consumismo na infância em geral e o site deles têm muita informação interessante e é bastante acessível. Há a Aliança pela Infância, a Rede Nacional Primeira Infância e tantos outros. O próprio CONANDA recentemente se debruçou sobre o tema da publicidade infantil e publicou no começo desse ano uma recomendação sobre publicidade infantil.
No mais, precisamos nos fortalecer enquanto cidadãos e em grupos e não nos isolarmos com nossos problemas. Porque não pensar junto com outros pais como agir em relação a determinados temas. Sabemos que de nada adianta restringir o acesso de seu filho a certos conteúdos ou produtos se ele terá acesso a isso na escola ou na casa de amigos/colegas. Então que tal falar com a escola e com os outros pais e começar a refletir sobre o tema?
Personagens de desenhos, novelas e outros programas influenciam o comportamento das crianças. Como minimizar esses efeitos?
Não acredito em opções que se colocam por meio de imposições. Queremos criar filhos autônomos e com pensamento crítico, com capacidade de discernimento. Então acho que, mais importante do que restringir conteúdos de mídia é oferecer outras opções às crianças. E dialogar com elas. Assistir aos desenhos animados juntos. Discutir, saber o que elas pensam do que estão vendo, apresentar contrapontos, questionamentos. Acho que esse é um bom caminho.
Em 2011, sutiãs com bojo de espuma estavam sendo vendidos para crianças de 6 anos nas Casas Pernambucanas. O produto foi licenciado pela marca Disney e trazia estampas de personagens nas peças. Qual a responsabilidade dessas marcas em uma ação como essa?
Não podemos nos enganar. Empresas visam o lucro e não o desenvolvimento infantil saudável e feliz. No entanto, pela Constituição Federal (art. 227) e em razão da adoção de tratados internacionais do qual o Brasil é signatário, as empresas têm responsabilidade em garantir a proteção integral de crianças e adolescentes. Isso não significa que vão se sobrepor ao papel dos pais. Mas não podem contribuir para dificultar o papel dos pais, escola etc. no processo de educar seus filhos. Assim, da mesma forma como é ilegal que uma empresa contrate trabalho infantil, também não deve se aproveitar da condição de criança para maximizar seus lucros, direcionando agressivamente campanhas e marketing para os pequenos.
O mercado, sendo estimulado pela mídia, gera na sociedade uma necessidade de consumo. Quem deve ser responsável por aquilo que chega às crianças? Por que se fala que os pais são tão vítimas quanto as crianças?
Hoje as empresas contratam ou têm setores de marketing que estudam profundamente o desenvolvimento infantil, como forma de melhor desenvolver estratégias de marketing que as atinjam de forma mais eficaz. Os pais não são especialistas em desenvolvimento infantil. São pais, pessoas normais, que estudaram direito, administração ou mesmo não chegaram à faculdade. Precisam trabalhar, não ficam em casa 24 horas por dia. Como eles podem fazer frente a esse arsenal extremamente profissional com que contam muitas empresas? É uma briga injusta.
A narrativa da pedofilia e do abuso sexual infantil está mais presente em muitas regiões do Brasil, mostrando que as crianças sofrem abuso. As denúncias, a partir disso, aumentaram. Você acredita que isso tem relação com a erotização da infância?
O aumento de denúncias pode estar relacionado a uma maior disponibilização de informações sobre o tema e mais canais para denúncias, não necessariamente a uma superexposição de crianças hiper sexualizadas na mídia. Mas também não se pode negar que esse contexto cultural pode contribuir para banalizar e até invisibilizar esse tipo de violência. Sabemos que no caso das crianças e das mulheres os agressores são sobretudo pessoas do círculo próximo da família. É um tema muito delicado e que é difícil de se fazer denúncias, há medo da exposição, de problemas familiares, rompimentos. Mas isso não pode impedir que protejamos nossas crianças. Acho que tratar crianças como crianças e não como objetos sexuais, na mídia e em outros contextos, é um bom caminho.
Por último, como quem não concorda com essa exposição das crianças pode protestar?
Denúncias podem ser feitas a órgãos públicos como o Ministério Público. Mas sabemos que hoje as mídias sociais têm um papel muito relevante na nossa sociedade. Fazer barulho nesses espaços, mandar cartas à empresa contestando o que foi divulgado, acredito que é também um bom caminho. Precisamos falar disso, colocar em evidência esses problemas.
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