Como o mecânico de automóveis argentino Jorge Odón inventou um aparelho que pode salvar a vida de milhões de bebês e mães que morrem durante o nascimento —e, de quebra, revolucionar a história da medicina
28/06/2014 - POR ENRICO FANTONI
Criador e criatura: Jorge Odón ao lado de um protótipo do seu aparelho. "Acharam que eu tinha enlouquecido" (Foto: Enrico Fantoni) |
Há oito anos, Jorge Odón almoçava com os funcionários da sua oficina mecânica em Banfield, pequena cidade da província de Buenos Aires, na Argentina, quando um deles propôs um desafio: tirar a rolha de dentro de uma garrafa de vinho vazia sem quebrá-la. À primeira vista, tratava-se de uma tarefa impossível. Admitindo a derrota, Odón observou maravilhado quando o desafiante colocou uma sacola plástica no interior da garrafa (deixando para fora a ponta com as alças), inclinou levemente o recipiente para que a rolha encostasse no plástico e começou a assoprar dentro da sacola. Um puxão nas alças e voilà: a rolha estava em sua mão.
Era apenas a ação combinada de dois princípios da física, mas para Odón, que não conhecia o truque, parecia mágica. Naquela noite, o mecânico de 60 anos e pai de cinco filhos acordou de sobressalto com uma ideia: o mesmo princípio poderia ser usado no parto de bebês. “Acontece bastante”, disse a GALILEU em seu escritório improvisado no sótão de sua pequena casa com jardim a uma hora do centro da cidade. “Acordo no meio da madrugada com a solução para um problema sobre o qual passei o dia pensando.” Foi assim que surgiu o OdónDevice, um aparelho que parece um desentupidor de pia com uma sacola plástica enrolada e que substitui o fórceps e a ventosa durante o parto. Mais do que isso, ele pode ajudar a evitar a morte de cinco milhões de recém-nascidos e 150 mil mães ao ano, segundo a Organização Mundial da Saúde.
No dia seguinte à epifania, Odón chamou o amigo e engenheiro Carlos Modena para almoçar. Após a refeição, colocou sobre a mesa alguns objetos, como uma faca, um saca-rolha, um garfo e uma sacola plástica com pão dentro, e repetiu o desafio da véspera. Uma boa meia hora passou antes de Modena dar-se por vencido. Triunfante, Odón repetiu o truque, explicou sua ideia e ofereceu-lhe sociedade. “Mas você é mecânico, o que sabe sobre partos e recém-nascidos?”, afirmou o amigo. Apesar do espanto, ofereceu-se para marcar uma consulta com um obstetra amigo da família. “Modena ficou sentado do outro lado da sala, como querendo mostrar que não tinha nada a ver com aquela loucura”, conta Odón aos risos. “Quando acabei a demonstração e o doutor disse que era uma ideia brilhante, ele já tinha trazido a cadeira mais para perto.” Com a aprovação de um médico, os dois sócios começaram a trabalhar no projeto na oficina de Odón, entre uma troca de freio e um ajuste de motor. Primeiro tentaram com uma jarra de vidro grande e um bonequinho. Depois, passaram a um útero de vidro, encomendado de um artesão, do qual tentavam retirar Luna — a boneca preferida de uma das filhas do inventor. Passavam horas fechados no banheiro. “Meus funcionários começaram a achar que eu tinha ficado louco”, diz Odón. Apesar de rudimentar, o protótipo parecia funcionar — e os dois saíram em busca de novos aliados na medicina.
Odón em ação: O aparelho é primeira grande inovação no ramo da obstetrícia nos últimos 400 anos (Foto: Enrico Fantoni) |
PEGADINHA
A primeira porta em que bateram foi a do Cemic, centro médico fundado em 1958 e vinculado à Universidade de Buenos Aires. Lá, trabalha o obstetra Javier Schvartzman, responsável por um parto complicado há 13 anos. Naquele dia 2 de fevereiro de 2001, o trabalho de parto da mulher havia iniciado normalmente — o rompimento da bolsa, a corrida até o hospital, as contrações. Mas logo alguma coisa deu errado, e a sala se encheu de médicos e enfermeiras com expressões preocupadas. O problema estava na posição da criança: ela estava de costas, com o pescoço dobrado e os ombros presos no canal do parto. Como era tarde demais para virá-la, Schvartzman decidiu recorrer ao fórceps. Enquanto puxava a criança, duas enfermeiras deitavam sobre a barriga da mãe, fazendo pressão com seus corpos. O caos foi ampliado pela frase que o médico deixou escapar entre os dentes. “Ela não sai, não consigo tirá-la”, disse ele, antes de pedir às enfermeiras que preparassem uma cesariana. A enfermeira que repetia “está tudo bem, não se preocupe”. Na verdade, não estava: durante o difícil trabalho de parto a criança teve seu crânio fraturado pelo uso do fórceps. Só depois de muitas tomografias foi descartada a possibilidade de qualquer dano neurológico.
“Na primeira vez em que nos encontramos, achei que estava sendo alvo de alguma brincadeira ou pegadinha”, conta Schvartzman, que recebeu o mecânico em sua sala e ficou assistindo enquanto ele tirava a garrafa e um saco plástico de sua sacola, um ritual que repetia sempre que queria falar sobre a sua ideia. “Enquanto isso, eu me perguntava onde poderia estar a câmera e qual de meus colegas estaria envolvido.” Seu ceticismo era justificado: desde o século 18 nada de novo havia sido inventado no campo da obstetrícia. O fórceps, ainda usado em salas de parto no mundo todo, tem 400 anos de idade, e a ventosa é um pouco mais jovem. Em comum, os dois aparelhos costumam causar danos ao bebê. Por isso, era no mínimo improvável que um mecânico aparecesse com algo realmente revolucionário. Após o truque, Odón mostrou seu invento — e naquele ponto o obstetra teve de admitir que se tratava de algo que merecia a sua atenção. Ao lado de outro médico do Cemic, o doutor Hugo Krupitzki, os dois começaram a se reunir periodicamente para aperfeiçoar o dispositivo. As alterações feitas por Odón e Modena na oficina mecânica eram encaminhadas à avaliação dos dois médicos. Schvartzman, que logo se tornaria o principal pesquisador do OdónDevice, logo notou que não era necessário envolver todo o corpo do bebê, mas apenas a cabeça — ideia que mudou o rumo do empreendimento. Com o projeto caminhando a passos largos, era hora de fazer com que ele fosse conhecido também fora da Argentina.
«O OdónDevice pode reduzir drasticamente a incidência dos três principais fatores da morte materna durante o parto: a hemorragia pós-parto, as infecções de útero e o parto obstruído.Ele também diminui o risco do bebê contrair HIV»
MUITOS BENEFÍCIOS
A oportunidade veio num evento da Organização Mundial da Saúde em Buenos Aires. Mario Merialdi, médico italiano à frente da Equipe de Reprodução Humana, da OMS, estava na capital argentina e também recebeu com ceticismo o pedido dos médicos do Cemic para avaliar o OdónDevice.
Frente à insistência, ofereceu aos inventores 10 minutos do seu tempo para um bate-papo numa pequena sala de um hotel cinco estrelas. O encontro estendeu-se por quase duas horas. Merialdi tornou-se o principal apoiador da ideia, e logo pediu a Schvartzman e Krupitzki que trabalhassem para elaborar os protocolos necessários à aprovação do novo dispositivo pela OMS. A primeira missão era provar que ele não era prejudicial à criança ou à mãe. Para isso, Odón e seu time foram levados a Desmoines, nos Estados Unidos, onde uma máquina reproduz em detalhes todas as fases do parto, incluindo as possíveis complicações. O OdónDevice foi aprovado com louvor (veja como o aparelho funciona ao lado) e passou a ser testado em 30 mulheres na Argentina. O mecânico assistiu a todos os partos, fazendo alterações necessárias no aparelho, que será produzido a um custo de US$ 50 pela empresa norte-americana BD (Becton, Dickinson andCompany). O preço foi uma exigência de Odón para que o aparelho seja usado em países em desenvolvimento, que são aqueles que mais sofrem com os óbitos durante o parto.
A empolgação em torno do projeto tem uma explicação: a lista de benefícios trazidos pelo OdónDevice. O aparelho pode reduzir drasticamente a incidência dos três principais fatores de morte materna durante o processo de nascimento: a hemorragia pós-parto, as infecções de útero e o parto obstruído. Outro efeito positivo é o de limitar o contato do bebê com as mucosas do canal de parto, a principal causa de transmissão do vírus HIV ao recém-nascido. Isso significa condições de parto mais seguras para a mãe e o bebê, sobretudo nos países onde os medicamentos retrovirais não são tão acessíveis. Sem falar que ele pode reduzir o número de cesarianas, procedimento caro e usado sem critério pelos médicos em países em desenvolvimento, como o Brasil. Agora, os inventores se preparam para o início da segunda fase dos testes, que se estenderá até o final do ano. Escolhidos aleatoriamente, dois grupos de mulheres na primeira gestação serão objeto do estudo: o primeiro grupo terá seu parto realizado com os meios disponíveis hoje na medicina, enquanto o segundo grupo terá o OdónDevice aplicado sistematicamente.
Enquanto aguardam os resultados dos testes, a vida de todos os protagonistas desta história mudou drasticamente. Mario Merialdi, o médico da OMS que deu o apoio inicial ao projeto, deixou o cargo para trabalhar na Becton, Dickinson andCompany, supervisionando o desenvolvimento e produção do aparelho. Schvartzman e Krupitzki decidiram permanecer à frente do time de experimentos e são convidados para conferências e simpósios em todo o mundo. Nenhum dos dois tem participação nos lucros, mas isso não parece ser motivo de preocupação. “A ideia de ter contribuído para uma invenção que pode mudar a história da medicina não tem preço”, afirma Schvartzman. “Essa é a maior recompensa.” Mas quem passou pela mudança mais radical, claro, foi o agora ex-mecânico de Banfield, Jorge Odón. Ele vendeu a oficina ao filho e agora se dedica à sua invenção. Sua história foi parar na primeira página do jornal norte-americano The New York Times, e a revista Forbes acabou de colocar o OdónDevice entre as cinco invenções mais interessantes no mundo. Odón já não se sente um peixe fora d’água quando faz reuniões com médicos e cientistas de todo o mundo. “Percebi que ter a formação de mecânico é uma vantagem, somos inventores natos”, afirma ele. Depois de tantas visitas a salas de partos, o inventor está gestando outra ideia que, espera, repetirá o sucesso de sua primogênita. Mas, pelo menos por enquanto, prefere não falar sobre o assunto.
(Foto: Feu/Editora globo) (FOTO: FEU/EDITORA GLOBO) |
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