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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Espírito das fraternity houses universitárias norte-americanas protege estupradores e pune as jovens que os denunciam

29/11/2014

A revista Rolling Stone que está nas bancas nos Estados Unidos contém uma denúncia que causou repulsa no país e continua a repercutir no exterior. Em 2012, uma estudante de 18 anos foi estuprada e espancada por sete colegas da Universidade da Virgínia, em Charlottesville. O crime aconteceu durante uma festa numa fraternity house – tipo de república ou residência estudantil. O choque não se deve apenas aos detalhes gráficos das três horas de horror a que foi submetida a estudante. O que aconteceu nas horas e nos dois anos seguintes é uma história de complacência e omissão criminosa. E, pior, ocorrida numa escola de prestígio, fundada por Thomas Jefferson, o terceiro presidente do país.

Os EUA acumularam mais pesquisa acadêmica e experiência jurídica sobre o problema da violência sexual em universidades do que qualquer outra importante democracia ocidental. Acumularam também estatísticas sombrias. Os números dispensam qualificação: 1 em 5 estudantes sofrem estupro ou tentativa de estupro no câmpus, mas só 5% a 10% denunciam a agressão (fora do câmpus o índice de denúncia de estupro é 35%).

O calvário pós-estupro da estudante, que a Rolling Stone identifica pelo pseudônimo Jackie, começou já na saída da fraternity house. Na rua, descalça e com a roupa ensanguentada, ela telefonou para seus dois melhores amigos, um rapaz e uma jovem que a desaconselharam a ir ao hospital ou denunciar o crime à universidade. Um ano depois do ataque, Jackie não conseguia acompanhar o curso, caiu em depressão, pensava em se suicidar e contou o que aconteceu à escola. A diretora encarregada de casos de agressão sexual no câmpus deu a Jackie a opção de não fazer nada, ir à polícia, relatar o caso a um comitê disciplinar ou, pasmem, ter um encontro supervisionado com seus estupradores em que Jackie expressaria seus sentimentos em busca de uma ‘solução informal’.

Exposta à vergonha nacional, a Universidade da Virgínia cancelou todas as festas nas associações estudantis e prometeu elaborar novas diretrizes para combater a violência sexual. A universidade é uma das 86 escolas de ensino superior sendo investigadas pelo governo federal sob uma lei de igualdade de direito à educação que encampou assédio e agressão sexual como promotores de desigualdade. O grupo inclui universidades de elite como Harvard. A punição vai de multas até a suspensão de financiamento federal. A investigação é conduzida pelo Escritório de Direitos Humanos do Departamento de Educação.

O governo de Barack Obama, especialmente o vice-presidente, Joe Biden, tem sido ativo no reconhecimento e combate à epidemia de violência sexual nas universidades, um problema mais agudo num país onde dois terços dos estudantes começam a vida universitária morando em dormitórios no câmpus, frequentemente num Estado distante de casa. Em janeiro deste ano, a Casa Branca instituiu uma força-tarefa para proteger estudantes contra a violência sexual.

Mas uma recomendação feita pelo governo Obama em 2011, cuja intenção era facilitar as denúncias, está sendo criticada pelo efeito oposto. O governo federal disse às escolas que era obrigação delas investigar denúncias e lhes atribuiu a tarefa de adjudicar os casos, na esperança de que, contando com um estágio anterior a chamar a polícia, estudantes teriam incentivo para contar suas histórias. Na prática, as escolas se viram transformadas em tribunais, com professores e bibliotecários em comitês de avaliação do que é, de fato, um crime. O processo é falho – frequentemente resulta em punições como suspensão ou expulsão para criminosos que deveriam estar cumprindo pena de prisão. Pesquisas mostram que cerca de 4% dos estudantes são autores da maioria dos estupros e são reincidentes, cometendo em média, cada um, seis estupros.

Entre os críticos que querem ver os agressores enfrentando a Justiça, e não o casulo institucional universitário, está a professora Bonnie Sue Fisher, da Universidade de Cincinnati, uma pioneira dos estudos sobre a violência no câmpus, e coautora de livros sobre o tema, como Campus Crime: Legal, Social, and Policy Perspectives.

Desde que começou a examinar números de violência sexual em câmpus, a sra. notou padrões que distinguem algumas escolas?
Nenhum câmpus é imune à agressão sexual. O que varia é o número de alunas que revelam sua experiência e a reação institucional. Ainda hoje, de 90% a 95% dos casos de violência sexual não são denunciados nas escolas. Algumas escolas fecham os olhos para as ocorrências, outras sinalizam apoio às alunas para encoraja-las a fazer denúncias. Quando há a percepção de que uma escola vá criar obstáculos, a reação da aluna é pensar ‘não quero ser vitimizada uma segunda vez, não quero que minha integridade seja questionada’. O que estamos vendo agora é uma transformação cultural que ajuda as vítimas a falar, não porque as universidades fizeram progresso em lidar com o problema, mas apesar delas. Note que as mulheres agora são 58% das novas inscrições e há um movimento social maior de conscientização.

Quando o governo americano começou a encarar o problema do estupro no câmpus?
Em 1990, o presidente George Bush, pai, assinou o Clery Act, uma lei obrigando qualquer escola que recebesse fundos federais a relatar todos os incidentes de crime no câmpus à polícia. O ato levou o nome de Jeanne Clery, que tinha 19 anos quando foi barbaramente estuprada e assassinada no prédio de seu dormitório na Lehigh University, na Pensilvânia, em 1986. Seus pais se tornaram ativistas e perceberam que o problema da segurança em universidades era nacional. A lei passou por várias emendas, mas ficou claro que tinha problemas. Os relatórios anuais feitos ao Departamento de Educação eram incompletos, não havia cobrança sistemática pelo governo. A emenda mais importante veio em 2011 com o chamado SaVE Act (Ato de Eliminação da Violência no Câmpus), que, entre outras mudanças, ampliou as exigências para lidar com incidentes como violência doméstica, intimidade forçada e stalking (perseguição).

A reportagem da Rolling Stone que revelou o estupro de uma estudante por sete colegas na Universidade da Virgínia a surpreendeu?
Não. Há mais de 15 anos pesquiso o assunto e sabemos de casos extremamente violentos que não foram propriamente investigados ou nem denunciados, em que responsáveis não foram punidos. Não podemos subestimar a mentalidade de grupo que domina as fraternity houses. Ela recompensa o comportamento de seus frequentadores e pune as jovens que apontam seu agressor. Mas reportagens como a da Rolling Stone são um sinal de que não é mais possível continuar como está. O trem já saiu da estação.

Como sua pesquisa atual contribui para a força tarefa instituída este ano pela Casa Branca para proteger estudantes?
Estou trabalhando num modelo de questionário para melhorar a coleta de dados. Por mais que haja controvérsia sobre o tema, minha experiência nesse campo é clara: as palavras usadas têm impacto significativo. Não adianta sair perguntando: ‘Você foi estuprada?’, ‘Sofreu agressão sexual?’ É necessário fazer perguntas específicas sobre penetração vaginal pelo pênis ou outros objetos, sexo anal. São desconfortáveis, mas têm que ser feitas.

O que acha da lei de ‘consentimento sexual afirmativo’ implantada recentemente na Califórnia, que exige que o ‘sim’ para interação sexual seja comunicado inequivocamente?
Confesso que não compreendo essa lei e ainda não recebi uma explicação satisfatória. E não vejo como ela pode lidar com esse problema. Parece que estão buscando uma solução mágica. Estamos falando de jovens de 18 a 24 anos, vivendo um período impulsivo e de experimentação que corresponde a uma fase biológica. Esperamos que dois jovens tomem decisões com resultados positivos. Mas se prender a detalhes dessa maneira? Desconfio que a lei é resultado de uma visão clássica do estupro, da mulher emboscada por um estranho que salta de um arbusto.

Mas a maioria dos casos de violência sexual não ocorre entre conhecidos?
Com certeza, mesmo que seja entre duas pessoas que se encontraram pela primeira vez num programa, o que contribui para a hesitação em fazer a denúncia. Por isso, acho muito importante os ‘kits de estupro’ em que um exame de coleta forense ao menos pode ajudar a identificar o agressor. Descobrimos também que vítimas de violência sexual têm mais risco de sofrer novo ataque do que quem nunca passou pela experiência, o que deve estar ligado ao fato de se tratar de conhecidos.

O que a sra. acha da maneira como as escolas foram colocadas na posição de investigar e julgar casos de agressão sexual?
É um problema e não vejo como instituições devam se transformar em juízes. É para isso que temos o Judiciário e tribunais. Estamos vendo casos de estupro examinados em audiências disciplinares. Se houvesse um assassinato no câmpus, passaria pela cabeça de alguém convocar professores para examinar a evidência? Compreendo que estamos falando de um ecossistema de pessoas educadas e que a escola tenha um certo papel in loco parentis. Mas a audiência disciplinar acaba por reduzir um crime a, por exemplo, um caso de plágio acadêmico.

Em 1984, nos EUA, um ato aprovado pelo Congresso elevou a idade mínima para consumo de álcool para 21 anos. A competência para legislar sobre isso é estadual, mas inúmeros Estados seguiram o exemplo. Isso fez aumentar o consumo de álcool a portas fechadas nas escolas?
O álcool é um grande fator, tanto em termos de consumo voluntário como quando é usado por agressores para se aproveitar da vítima. Eu tenho mais de 50 anos e posso dizer que o álcool definiu nossos anos de universidade. Saíamos de casa para viver nos dormitórios e encontrávamos uma súbita liberdade. Quando a idade limite era 18 anos, as festas ao menos eram supervisionadas pelas escolas. Eu pesquisei a história do crime no câmpus universitário americano e outros tipos violência eram comuns mesmo quando as escolas só eram frequentadas por homens.

O que acha da expressão ‘cultura do estupro’, às vezes criticada como um exagero?
Se não há punição, se instituições envolvidas não estão sendo chamadas à responsabilidade, acho que temos ao menos uma cultura de facilitação. Mas as coisas estão mudando. Tenho me comunicado com acadêmicos na Europa, na Austrália e no Canadá. Começamos a acumular conhecimento sobre aspectos comuns da questão da violência sexual em outros países, mas nós, americanos, temos essa tradição maior de os jovens saírem de casa para morar no câmpus. Acho que nenhum país desenvolveu tanta pesquisa e metodologia como os Estados Unidos. Há cinco anos, eu dou um curso de vitimologia tanto na graduação quanto na pós-graduação. Não passa um semestre sem uma aluna pedir um encontro reservado e começar a contar sua história de estupro ou outra forma de violência sexual. Mesmo quem contesta as estatísticas, alegando que a metodologia de coleta de dados é falha, precisa fazer uma pausa. Não importa se o número real é 1 em 4 ou 1 em 5, serão vítimas na universidade. Se o número de mulheres matriculadas continua a subir, chegou a 58%, estamos falando de uma população expressiva.

Há alguma relação entre o fato de as mulheres estarem em maioria na educação superior e em presença crescente no mercado de trabalho com essas estatísticas tão altas de agressão sexual?
Boa pergunta. Não temos resposta para isso ainda. Mas é certamente algo que devamos examinar.

Compromisso e Atitude

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