terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Filhos usados na vingança

A triste realidade de vítimas de alienação parental e um debate que cresce no país

ISABEL CLEMENTE
30/11/2014

"Eu reencontrei minha mãe há mais ou menos 10 anos. Nosso reencontro não foi bom, mas consegui transpor algumas barreiras. Trouxe-a para morar perto de mim até que ela faleceu, vítima do mal de Alzeimer, há dois anos. Ainda dói bastante no meu coração o tempo que deixamos de viver um com o outro. Gostaria de arrancar isso da minha mente, mas tudo o que vivi continua real demais. Espero que, ao ler isto, as pessoas compreendam que a criança que fomos um dia nunca deixará de existir. Somos todos apenas crianças crescidas. E não devemos repetir a história com nossos filhos. Estejamos atentos".

Aos 53 anos, Sérgio não fechou a lacuna aberta pela ausência forçada da mãe. Sob a guarda do pai, ainda criança, ele foi impedido de manter contato com ela. Juliana, de 31 anos, percebeu a tempo o erro que estava cometendo ao obrigar as duas filhas, depois da separação, a escolher entre papai e mamãe.

"Eu me lembro dos rostinhos assustados, como que pedindo mãe, não faz isso, nós amamos os dois, mesmo assim levei as duas comigo", diz. Com o tempo, a responsabilidade e o cansaço pesaram nas costas de Juliana, que decidiu procurar o ex-marido e propor a guarda compartilhada. "Foi a melhor escolha que já fiz em favor das meninas, e para o pai também, que tinha perdido o significado de viver. Minha raiva se transformou numa enorme admiração. Ele voltou a ter forças para continuar o tempo que lhe restava aqui na terra e viveu para as filhas com todo amor que se pode ter por um filho. Diante disso reconheço e peço pais e mães para que se unam, não sejam egoístas, porque nossos filhos precisam do nosso amor, e não da discórdia", diz Juliana.

Os dois depoimentos fazem parte do livro A morte inventada – Ensaios e Vozes (Editora Saraiva), organizado pelos cineastas Alan Minas e Daniela Vitorino, autores de um documentário de mesmo nome sobre a alienação parental. Daniela e Alan _ ela brasiliense, ele carioca _, casados há 11 anos e pais de um menino de 7, decidiram investigar o assunto depois que Alan começou a sofrer na pele o problema após se separar. "É apavorante a quantidade de pessoas que sofre com isso", diz Daniela.

A ideia do livro, segundo Daniela, é acrescentar novas vozes e mais histórias a esse debate sobre um drama que destrói a vida de pessoas e corrói relações familiares usando as crianças como pivôs para uma vingança. Com base em 20 depoimentos de pessoas submetidas a esse conflito e 20 ensaios de pensadores sobre o tema, o livro se propõe a ampliar a consciência de um mal que não encontra fronteiras, nem sociais, nem econômicas nem geográficas. Como bem traduziu a cientista política Beatriz Wey, em seu ensaio, esse é um mal praticado por pessoas comuns.

"Por mais irônico que parece a banalidade do mal não está na crueldade visível e imediata do ato praticado. Assim como também não a identificamos naquele que o pratica ao olharmos dentro de seus olhos ou observamos seus movimentos, aqueles que antecedem a prática do mal. Quem o pratica são pessoas comuns, que podemos conhecer de perto, que convidamos para freqüentarem as nossas casas e que em determinado momento escolhemos para casar, com a certeza de que encontramos a nossa pessoa, aquela com quem queremos ter os nossos filhos", afirma Beatriz.

Não estamos falando de criminosos convencionais, mas de pessoas capazes de usar da própria influência e do amor dos filhos para destruir a imagem do outro, algo tão à mão de casais separados como daqueles que ainda dividem o lar em eterno conflito. O processo da alienação parental começa, muitas vezes, dentro de casa, segundo os especialistas, quando um desqualifica e impede o outro de exercer sua função, de pai ou mãe. Pelo divórcio, o guardião paranoico - na maioria dos casos, as mulheres - consegue, muitas vezes, concretizar o ensaio desse rompimento, exercido dia-a-dia por ações e sutilezas. Às vezes é a doença de última hora que não permite a criança sair com o pai, um compromisso da escola ou, quem sabe, o desejo da criança. "Ela não quer te ver hoje", diz, lacônica, a ex-mulher ao telefone. Como o pai sai dessa? E se for o contrário?

"Podemos diante do outro criar uma fábula e contá-la tantas vezes da mesma maneira que passamos a acreditar em nossa ficção. Podemos falar com propriedade de fatos e acontecimentos que não existiram, ou pelo menos não da maneira como contamos, para fazer com que tantas pessoas se sensibilizem e acreditem em nós", escreve Beatriz Wey.
O Senado aprovou, na última quarta-feira, dia 26 de novembro, a lei da guarda compartilhada, agora apenas no aguardo da sanção presidencial. Embora a lei não vá garantir relações saudáveis e equilibradas em nome do interesse maior da criança, é um primeiro passo que impede a legitimação da guarda unilateral, que tira de um dos genitores o poder de decidir sobre a vida do próprio filho. Não se trata, portanto, de uma divisão do tempo com o filho.

"Como jornalista na cobertura de comportamento, fiz inúmeras matérias sobre as novas famílias. Encontrei lindas histórias de amor, paciência e flexibilidade, mas também de intolerância e desarmonia. Entre estas últimas, certamente as piores foram as que envolviam a alienação parental, em especial a implantação de falsas memórias. Mais de um personagem a quem entrevistei relataram a confusão mental que tinham relação à infância. O que era realidade e o que era algo que lhes foi contado, de forma insistente, a ponto de se transformar em uma lembrança fabricada? Meu pai me abandonou, me rejeitou ou assim me foi contado?", escreve a jornalista e escritora Martha Mendonça, ex-repórter de Época, num dos ensaios do livro.

Juíza titular da Vara de Família por 15 anos, Andréa Pachá observou "de um lugar privilegiado, os desgastes causados pela intolerância e pela incompreensão".  Em seu texto sobre o tema, que integra o livro A morte inventada, Andréa afirma que "não há desamor maior do que expor um filho a um confronto inventado e pretender que uma criança, que precisa de uma rede de proteção para que se forme adequadamente, assuma o papel de mediador e seja compulsoriamente obrigada a escolher um lado, durante um processo de separação".

Não raro, a criança assume como verdade o que lhe é dito por uma das partes e até que ela perceba que não há uma relação direta entre a memória fabricada e aquele pai ou aquela mãe do qual foi afastada, muito tempo terá se passado. Talvez, quando crescer, se chegar a encontrar dentro de si coragem para fechar o buraco que ficou, essa ex-criança explique que, apesar de tudo, queria que aquele pai distante e mal falado não tivesse desistido dela, por mais difícil que fosse. Essa é uma das comoventes histórias do documentário.

A memória dos pais é tão poderosa que ficará para sempre na história de uma pessoa, inclusive depois que eles morrerem. Romper esses laços em vida tem um alto custo. Começa pelo convívio abortado, impossível de ser resgatado. E só restará a esses filhos e esses pais num eventual reencontro reconstruir a ponte que ruiu entre eles.

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