terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A Lei Maria da Penha e o Direito Penal Militar, por Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

Compromisso e Atitude
05/01/2015

Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha é doutora em Direito e professora universitária. É ministra do Superior Tribunal Militar (STM), em que atualmente exerce o cargo de presidente (biênio 2013-2015).

Falar sobre a Lei Maria da Penha é falar dos avanços históricos em favor do direito das mulheres.

Cunhada nos anos 90, a expressão “os direitos das mulheres são direitos humanos” é, portanto, muito recente, apesar de a Declaração Universal dos Direitos Humanos contar com mais de 50 anos.

No Brasil, as primeiras Constituições, de 1824 e de 1891, asseguraram formalmente o princípio da igualdade. Já a Carta de 1934 conferiu às mulheres o direito ao voto, bem como vedou expressamente privilégios e distinções por motivo de sexo, vedação que se estendia, inclusive, ao pagamento de salário diferenciado em virtude de gênero. Será, também, sob o primeiro Governo Vargas que se garantirá assistência médica e sanitária à gestante, antes e depois do parto, sem prejuízo da remuneração e do emprego, garantia que se repetiria nas Leis Fundamentais posteriores, a de 1937, 1946 e 1967, emendada em 69.

Contudo, a luta exitosa do movimento feminino se evidencia na Constituição Cidadã de 1988, que estabelece a igualdade entre homens e mulheres especificamente no âmbito familiar; que proíbe a discriminação no mercado de trabalho por motivo de sexo, protegendo a mulher com regras especiais de acesso; que resguarda o direito das presidiárias de amamentarem seus filhos; que protege a maternidade como direito social; que reconhece o planejamento familiar como uma livre decisão do casal; e, principalmente, que institui ser dever do Estado coibir a violência no âmbito das relações familiares, dentre outras conquistas.

As determinações máximas, por sua vez, foram complementadas pelas Constituições Estaduais e pela positividade vigente, dentre as quais se destacam o novo Código Civil, que operou mudanças substanciais na situação jurídica da mulher; a Lei nº 8.930/1994 que incluiu o estupro no rol dos crimes hediondos; a Lei nº 9.318/1996 que agravou a pena dos crimes cometidos contra a mulher grávida; e a Lei nº 11.340/2006 – a famosa Lei Maria da Penha – que penaliza com efetividade os casos de violência de gênero. Vislumbra-se, pois, um vigoroso arcabouço legislativo que ilustra os significativos avanços operados na proteção dos direitos femininos no cenário da história legislativa pátria.

Paralelamente, no plano externo, foram firmados pelo Brasil tratados internacionais, a exemplo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU, conhecida como CEDAW, sua sigla em inglês; o Protocolo Facultativo à CEDAW; e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a chamada Convenção de Belém do Pará da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Vê-se que medidas jurídico-normativas vêm sendo adotadas pelo Estado brasileiro e, sem dúvida, elas constituem conquistas importantes em prol dos direitos humanos.

Será, porém, com o advento da Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que emergirá no ordenamento nacional uma nova modalidade de política criminal, aquela que visa defender a mulher das agressões sofridas em âmbito familiar, com um rigor maior do que o previsto pela legislação até então vigente.

O diploma legal ganhou esse nome em homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes que, em 1983, sofreu duas tentativas de homicídio por parte do marido. Na primeira vez, o cônjuge, simulando um assalto, tentou assassiná-la enquanto dormia, com um tiro nas costas que a deixou paraplégica. Duas semanas após sair do hospital, ao voltar para casa, ele articulou nova agressão: descascou os fios do chuveiro da suíte de modo que, quando ela fosse tomar banho, morresse eletrocutada. O agressor foi julgado duas vezes, mas, devido aos recursos contrários à decisão do Tribunal do Júri, permaneceu solto por 19 anos e ficou preso em regime fechado somente 2 anos.

Em razão da morosidade injustificada do Judiciário, a biofarmacêutica, em conjunto com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) formalizaram uma denúncia contra o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que culminou com o relatório 54/1, que concluiu ter o Brasil sido omisso em relação ao problema da violência contra a mulher de modo geral e, em particular, contra Maria da Penha Fernandes, recomendando a adoção de medidas legais simplificadoras com vistas a possibilitar a real implementação de direitos já reconhecidos nas Convenções Internacionais. Disto resultou a prisão do ex-marido de Maria da Penha e a promulgação da Lei nº 11.340, em 7 de agosto de 2006.

A norma cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal e dos tratados internacionais ratificados sobre a matéria.

Buscou o legislador colmatar a vergonha e a reiterada prática da violência de gênero, não importando o sexo do perpetrador, desde que detenha o exigido vínculo doméstico ou mantenha ou tenha mantido com a vítima relação de afeto. A lei não abrange a violência da mulher contra o homem que, em tese, cairia na regra geral de competência do Código Penal Comum; contudo, há julgados que aplicam suas estatuições aos casos de violência da mulher contra o homem se atendidos os pressupostos do vínculo familiar, afetivo e de intimidade.

Embora a violência de gênero, a violência doméstica e a violência contra as mulheres estejam vinculadas entre si, são conceitualmente diversas, mormente no que concerne ao seu âmbito de atuação.

A violência de gênero apresenta-se de maneira mais extensa, sendo concebida como a prática de diversos atos contra as mulheres como forma de submetê-las a sofrimento físico, sexual e psicológico, aí incluídas as variadas ameaças, não só na quadra intrafamiliar, mas também social. Ela enfatiza as relações de trabalho e a imposição ou pretensão de imposição de subordinação e controle de um sexo sobre o outro no ambiente laboral.

Por seu turno, a violência doméstica possui significado idêntico à violência familiar, circunscrevendo-se às omissões e atos de maltratos desenvolvidos no seio domiciliar, residencial ou em um lugar onde habite um grupo familiar no qual fazem parte mulheres, crianças, idosos, portadores de necessidades especiais, que sofram agressões físicas ou psíquicas, praticadas por membro do mesmo grupo. Trata-se de acepção que não prioriza a mulher, mas todos os membros da família.

Por último, define-se a violência contra a mulher como todas as formas de violência por ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, dano moral ou patrimonial.

A Lei nº 11.340/2006 é clara ao coibir e prevenir a violência doméstica e familiar, protegendo-a contra os atos de agressão praticados por homens ou mulheres com os quais ela tenha ou haja tido relações maritais ou de afetividade, não importando sua orientação sexual. Está-se diante de uma evolução legal da definição de família e de relação íntima de afeto. Certo é que novas doutrinas flexibilizaram o conceito civilista de entidade familiar para alcançar os casais homoafetivos. No Brasil, a questão foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4277 e na ADPF nº 132 que ampliou a tradicional união entre homem e mulher. Nesse sentido, a Lei Maria da Penha constitui legislação de vanguarda, porquanto o parágrafo único do art. 5º reproduz texto inovador ao estabelecer, pela primeira vez no sistema positivo, preceituação entre parceiras do mesmo sexo e, ressalve-se, antes da paradigmática decisão da Suprema Corte.

Nesse diapasão, a união homoafetiva à luz da ratio exsurge como um núcleo familiar compreendido por indivíduos que se consideram aparentados e unidos por vontade expressa. São cônjuges autoconsiderados, vez que, perante si e a sociedade possuem um vínculo íntimo sólido, com envolvimento sexual e amoroso.

Busca, então, a lei em comento resguardar a mulher da violência de pessoas com as quais conviva na intimidade, sejam elas o pai, a mãe, o irmão, o cunhado, a filha, o filho, os netos, além do marido, companheiro ou companheira. Atente-se para a desnecessidade da agressão ocorrer no espaço físico do lar, podendo se dar em qualquer lugar.

Estabeleceu a legis várias modalidades de violência, são elas:

• violência física – conduta que resulta em ofensa à integridade ou à saúde corporal da mulher;

• violência psicológica – conduta que cause dano emocional à mulher e diminua sua autoestima; que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento; que vise degradá-la ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração, que limite seu direito de ir e vir, bem assim qualquer outra que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

• violência sexual – conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, sua sexualidade; que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

• violência patrimonial – conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos pertencentes à mulher, tais como: instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores, direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

• violência moral – conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Para além, a Lei nº 11.340 estatuiu regras e institutos de extrema importância, dentre os quais se destacam:

• a alteração no Código Penal estabelecendo como agravante o cometimento de crime com abuso de autoridade ou prevalecimento de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica;

• a modificação do conceito de lesão corporal decorrente de violência doméstica, pela diminuição da pena mínima de 6 meses para 3 meses, e o aumento da máxima de 1 ano para 3 anos; e

• a inaplicabilidade da Lei nº 9.099/1995, por exclusão taxativa do art. 41, com o consequente afastamento da competência dos Juizados Especiais devido à alteração do quantum do tipo penal, pois os crimes de violência contra mulher eram entendidos como sendo de menor potencial ofensivo e, na maioria das vezes, ocorria sua desclassificação. Como decorrência, afastou-se a vil política despenalizadora que banalizava os processos dessa natureza a tal ponto de as sanções serem convertidas em multa ou pagamento de cestas básicas, que, a propósito, restaram vedadas.

Notória a total ineficiência do sistema da Lei nº 9.099/1995 e do próprio modelo de medidas cautelares – cíveis ou criminais – então em vigor. A medida cautelar mais comum na área penal, a prisão preventiva, era incabível em face do disposto no art. 312 e 313 do CPP, situação que presentemente adquiriu novo contorno diante da previsão do art. 42 da Lei nº 11.340/2004, que acresceu novo inciso ao art. 313, nos casos de violência contra a mulher.

À evidência o juiz poderá revogar a prisão preventiva se não mais se verificar o motivo que lhe deu causa; contudo, a liberdade do agressor deve ser comunicada à vítima a fim de que ela possa se precaver.

No tocante às medidas protetivas de urgência, cujo rol não é taxativo, impõe-se ao ofensor: 1) a suspensão da posse ou restrição do porte de armas; 2) o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência da vítima; 3) a proibição de determinadas condutas, tais como aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre eles; 4) o contato com a mulher vitimizada, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; 5) a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores; e 6) a prestação de alimentos provisionais ou preventivos.

Por seu turno, as medidas de urgência deferidas à ofendida são: 1) encaminhá-la e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou atendimento; 2) determinar sua recondução e de seus dependentes ao respectivo domicílio, após o afastamento do agressor; 3) resguardar seu afastamento do lar sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; 4) determinar a separação de corpos; 5) restituir-lhe o patrimônio indevidamente subtraído pelo agente ativo; 6) proibir temporariamente a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade comum, salvo expressa autorização judicial; 7) suspender as procurações conferidas pela mulher ao parceiro; e 8) a prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos decorrentes da prática de violência doméstica e familiar.

Ditas medidas poderão ser requeridas pelo Ministério Público ou pela vítima, e a autoridade judiciária terá um prazo de 48 horas para deferi-las a partir do recebimento do pedido. Ademais, autoriza-se serem elas concedidas inaudita altera pars e independentemente de manifestação do Parquet. E, ainda, a autoridade judiciária poderá outorgar tantas quantas forem necessárias para resguardar a mulher e os filhos, sendo possível serem substituídas ou revistas a qualquer tempo por outra de maior eficácia, bem como serem acrescidas àquelas já conferidas anteriormente, de forma a complementar a proteção.

Outro ponto a merecer destaque é a assistência da autoridade policial a ser efetivada, tanto preventivamente quanto repressivamente – arts. 10 e 11. Um rol de dispositivos assecuratórios foi estipulado como encaminhar a vítima ao hospital ou posto de saúde e ao IML, transportá-la e seus dependentes para abrigo ou local seguro, informá-la sobre os seus direitos, dentre outros. Observa-se aí uma polícia mais participativa, protetiva e zelosa no atendimento à mulher agredida.

Resgatou-se, oportunamente, a figura do inquérito policial, dantes afastado pela Lei nº 9.099/1995, substituído que foi pelo Termo Circunstanciado, aplicável às infrações de menor potencial ofensivo.

No tocante aos procedimentos judiciários, ficou autorizada a aplicação subsidiária do CPP, CPC, do ECA, do Estatuto do Idoso e de outras normas extravagantes.

Alfim, a Lei Maria da Penha determinou, e isto é de fundamental importância, a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de competência cível e criminal; previu a realização dos atos processuais no horário noturno; estabeleceu a competência jurisdicional conforme opção da vítima, podendo ser o local do domicílio, da residência, do lugar do fato ou do domicílio do agressor; proibiu a aplicação de penas pecuniárias, além de vedar a aplicação isolada de multa em substituição às penas cominadas. Mais, no tocante à renúncia da ação penal pública condicionada à representação, esta só poderá ocorrer se a ofendida formalizá-la perante a autoridade judiciária, em audiência própria e antes do recebimento da denúncia, ouvido o MP.

Em suma, a Lei nº 11.340/2006 é o resultado de uma política afirmativa que busca neutralizar o desequilíbrio fático do gênero feminino frente às relações sociais, justificada pela situação de vulnerabilidade e hipossuficiência na qual se encontram a maior parte das mulheres abusadas, a necessitarem de proteção especial do Estado para, ao menos, alcançarem a igualdade processual.

Da violência contra a mulher militar

Certo é que a participação feminina nos efetivos das Forças Armadas vem, historicamente, aumentando. Não obstante, o fato de elas integrarem as forças militares não obstaculiza eventuais agressões perpetradas pelos cônjuges ou companheiros no recinto do lar – uma vez que, se a violência ocorrer no ambiente de trabalho, na caserna, a situação fática diferencia-se e a hierarquia e disciplina passam a ser os bens maiores juridicamente tutelados.

Nesses termos, o incremento do efetivo feminino nas Forças Armadas e a paulatina formação de relações afetivas entre colegas de farda vêm provocando um aumento dessa conduta delitiva. Lamentavelmente, a violência doméstica está presente em todas as classes e não exclui nenhuma vítima em razão do cargo ou do emprego que exerça. É um mal intrínseco e que representa uma das mais graves violações aos direitos humanos e fundamentais.

Daí porque o fato de elas ostentarem o status de militar não impede que sejam vítimas de abusos cometidos por cônjuges ou companheiros, igualmente militares, no seio familiar.

Consciente desta realidade, defendo com veemência, a despeito de a maioria do Superior Tribunal Militar divergir, que mulheres fardadas atacadas por maridos ou companheiros de caserna, na intimidade do lar, encontram-se albergadas pela Lei Maria da Penha.

O art. 2º da Lei nº 11.340/2006 é taxativo ao dispor sobre seu alcance: “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”.

Por se tratarem tanto o Código Penal Militar quanto a Lei Maria da Penha de leis especiais e regulamentarem tipos penais afins nos crimes contra a pessoa, poder-se-ia supor um aparente conflito de normas constitucionais e/ou legais. Não é o caso. Isso porque, para um crime ser considerado de natureza militar, mister a afronta aos princípios fundamentais norteadores da ordem, disciplina e hierarquia das Forças Armadas. Assim, o delito só se define como tal, quando cometido em prejuízo da funcionalidade do Exército, Marinha e Aeronáutica. Os que estiverem fora desse enquadramento encontram óbice de natureza formal para sua apreciação na Justiça especializada e, por esse motivo, descabe a incidência da legislação castrense em processos de violência de gênero.

Enfatize-se estabelecer a Lex Magna, como direito fundamental, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da casa. Prevê o art. 226, § 8º, que o Estado assegurará assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir as agressões no âmbito de suas relações interpessoais.

Daí decorre não caber à Administração Militar adentrar em questões envolvendo bens jurídicos outros, tutelados pela Constituição, posto os atos oriundos das relações privadas não lesionarem, direta ou indiretamente, o bom funcionamento ou a própria imagem das instituições militares.

Mais, a casa é o asilo inviolável do indivíduo, por isso não está sujeita à ingerência das Forças Armadas – mesmo se localizada em vilas militares ou se tratar de Próprio Nacional Residencial – por manejar com a inviolabilidade, a traduzir-se no modo de vida doméstico, fatos, hábitos, pensamentos e segredos do cidadão.

A não prevalência desse entendimento vulnera a garantia fundamental necessária à intimidade pessoal e à liberdade humana. Pior, fere de morte o princípio da isonomia em face da consequente distinção entre a mulher civil e a militar, porquanto as medidas protetivas e a penalização do agressor de modo mais gravoso, oriundas da novel legislação, não são aplicáveis na Jurisdição Milicien.

Ora, é dever do julgador atentar no sentido de não criar ou não aumentar desigualdades arbitrárias. Inadmissível o Poder Judiciário instituir uma inevitável diferenciação normativa entre o gênero feminino e cercear direitos inerentes à segurança familiar, em razão da profissão, por ser flagrantemente inconstitucional.

Conclusão

Em suma, a Lei Maria da Penha não criou um tipo penal novo, apenas conferiu tratamento distinto à violência contra a mulher, seja ela física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial, com o agravamento das sanções e a previsão de medidas protetivas, devido ao alto grau de sua ocorrência, refletida em dados estatísticos assustadores e que custa ao país dez por cento do PIB.

Nesse contexto, dúvidas inexistem que a ação afirmativa, princípio constitucional da igualdade, reflete a mudança de postura do Estado que, em nome de uma suposta neutralidade no passado, ignorava a importância de fatores como gênero, etnia e orientação sexual.

Ao invés de conceber políticas públicas nas quais todos sejam beneficiários, a estatalidade passou a levar em conta, muito acertadamente, princípios outros, com o fito de evitar que a segregação dos segmentos minoritários que, inegavelmente, tem um fundo histórico e cultural e não raro se subtrai do enquadramento das categorias jurídicas clássicas, finde por perpetuar iniquidades sociais.

A intervenção do Poder Público, em contraposição à abstenção, reveste-se de uma função pedagógica porque coíbe a discriminação e promove o nivelamento. Por essa razão, as ações afirmativas, longe de refletirem um caráter assistencialista, refletem um ideal de cidadania que propõe romper com as estruturas arcaicas de injustiça, caracterizando-se como uma conquista civilizatória.

A Lei Maria da Penha implementa a tutela do gênero feminino em função da fragilidade na qual se encontram as mulheres vitimizadas. Claro é o intuito da legislação em resguardá-las independentemente da atividade profissional que exerçam; de outro modo, estar-se-ia diante de grave ofensa ao princípio da igualdade e da razoabilidade.

Trata-se, em última análise, de proteger a entidade familiar, ex vi do art. 226, § 8º, da C.F., impelido que é o Estado em “assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

Posto isto, não compete à Justiça Militar processar e julgar as relações pessoais em âmbito doméstico, retirando da mulher e de sua família inovações e garantias decorrentes de princípios internacionais e constitucionais.

As legislações aqui colocadas são especiais, mas inexiste entre elas qualquer conflito, na medida em que os objetos tutelados por cada qual não se confundem, sequer inter-relacionam-se.

Tal como colocado, à Jurisdição Castrense cabe processar e julgar litígios que vulnerem os princípios basilares das Forças Armadas: a hierarquia e a disciplina. Afinal, da atuação judicial se esperam decisões que conectem o direito à integridade a fim de se alcançar um ideal de moralidade historicamente construído, e não que estigmatizem ainda mais os vulneráveis.

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