quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Na Alemanha, Guimarães Rosa conheceu o anjo Aracy

Documentário conta a história da 'intrépida' mulher do escritor que, entre outras bravuras, atuou para salvar cerca de uma centena de judeus do nazismo

por Vitor Nuzzi publicado 14/12/2014
ACERVO FAMÍLIA TESS
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Guimarães receava que algo acontecesse: 'O pavor que você tinha que a Gestapo me pegasse...', escreve Aracy em carta
A história de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa foi sendo descoberta aos poucos. Há alguns anos se sabe que ela, como chefe do setor de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha, burlou orientação da diplomacia brasileira e arriscou-se diante do regime nazista para salvar judeus. Talvez uma centena deles. A conta é incerta. A própria Aracy, que morreu em 2011, aos 102 anos, evitava comentar. Mas os detalhes vão surgindo. Alguns revelam ironias históricas: na Alemanha, seu único filho, Eduardo Tess, entrou em uma fila com outras crianças para cumprimentar Adolf Hitler.

A revelação é feita por Plínio de Arruda Sampaio – que morou na mesma rua e era colega de Eduardo – no documentário Esse Viver Ninguém me Tira, longa de estreia do ator Caco Ciocler. “O Edu me contou uma vez que ele cumprimentou Hitler”, diz Plínio no filme. Hoje com 85 anos, o filho de Aracy confirma. Diz que ficou indeciso, até que resolveu se enfileirar para cumprimentar o líder alemão. “Ele perguntou de onde eu era”, recorda Eduardo. Outra coincidência histórica entre personagens tão distantes: Aracy (1908) e Hitler (1889) nasceram no mesmo dia, 20 de abril, com 19 anos de diferença. “Em meio ao horror inventado por ele, Aracy descobriu quem era ela”, escreveu a jornalista e escritora Eliane Brum em 2008, quando Aracy completou 100 anos e há muito tempo era conhecida como “anjo de Hamburgo”.

Paranaense de origem, Aracy foi cedo para São Paulo, onde teve uma criação de classe média alta. Em 1934, aos 26 anos, separada e com um filho de 5, deixou o Brasil e foi morar na Europa (sua mãe era alemã), na casa de uma tia. Depois de algum tempo, foi trabalhar no consulado em Hamburgo, onde conheceria João Guimarães Rosa, o cônsul adjunto, que tinha duas filhas (Vilma e Agnes) do primeiro casamento (com Lygia Cabral Penna). Já estavam juntos, mas casaram-se por procuração, no México, em 1942 – ainda não havia o divórcio. E ficariam juntos até a morte dele, em 1967. O livro Grande Sertão: Veredas, de 1956, começa com esta dedicatória: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Ela era Ara. Ele era Joãozinho.

Intrépida

ACERVO FAMÍLIA TESS
Aracy Moebius
Aracy chegou a transportar judeus clandestinos em carro diplomático
A historiadora Mônica Raisa Schpun, pesquisadora e professora do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autora do livro Justa, sobre Aracy e a imigração judaica, diz no filme pensar como foi embarcar para uma viagem de três semanas com um menino de 5 anos. “Fico tentando imaginar como ela subiu naquele navio.” De um país pacífico para uma Alemanha “já nazificada”, como define. Se tivesse de escolher apenas uma palavra para falar de Aracy, ela escolheria “intrépida”.

Há escassa informação sobre a atuação de Aracy no consulado. Familiares que dão depoimentos para o documentário são unânimes em dizer que ela era reservada em relação a esse assunto. O tema jamais apareceu nas correspondência com a mãe, nem nos diários que ela escrevia. Mas sabe-se que Guimarães Rosa receava que algo pudesse acontecer a ela (“O pavor que você tinha que a Gestapo me pegasse”, escreve Aracy em uma carta). “Ela não queria que isso ficasse documentado. Ela estava contrariando ordens superiores”, observa o sociólogo e escritor René Decol.

Havia orientação do governo brasileiro para não conceder, ou dificultar, vistos para a entrada de judeus no Brasil. Antes de romper com o Eixo e declarar guerra a Alemanha, Itália e Japão, o governo Vargas flertou com esses países. Decol, filho de sobreviventes do Holocausto, cita a Circular Secreta 1.127, de junho de 1937 – ano em que Guimarães Rosa chega à Alemanha, após passar em concurso –, sobre recusa de vistos a “indivíduos de origem semita”. Já sob o impacto da perseguição e violência contra os judeus na Alemanha, Aracy resolve burlar as ordens do Itamaraty.

Não se sabe bem que “técnicas” ela usou para isso. Misturava os pedidos à papelada do dia, conseguia passaportes sem o J vermelho que identificava os judeus. Teria “cúmplices” na administração pública de Hamburgo para conseguir falsos atestados de residência em Hamburgo para que judeus de outras regiões pudessem pedir vistos. Aracy também chegou a transportar gente no carro diplomático.

O cônsul, Joaquim de Souza Ribeiro, desconhecia as ações de sua chefe da área de passaportes. Um mérito do filme, senão o maior, é trazer depoimentos de pessoas salvas pela ação solidária de Aracy. Ou de pessoas que descobriram histórias de seus pais – e talvez nem existissem se isso não tivesse acontecido. A Segunda Guerra começara em 1939, mas as ações contra os judeus já haviam começado bem antes. As chamadas Leis de Nuremberg, por exemplo, são de 1935.

Imigração

Até 1942, quando declarou guerra ao Eixo, o Brasil mantinha boas relações com a Alemanha. Chegou a ser o principal parceiro comercial daquele país na América Latina, aponta o jornalista Lira Neto no segundo volume da recente trilogia sobre Getúlio Vargas. O pesquisador cita a mudança de política da diplomacia brasileira para “disciplinar” a emissão do visto a judeus.

“Em vez de incentivar a imigração judaica, as novas regras do Itamaraty tinham como objetivo declarado reduzi-la drasticamente”, escreve Lira Neto à página 362. Deu certo, conforme afirmava o próprio ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha: “O número de indivíduos de origem semita entrados no Brasil em 1939 foi de 2.289, o que representa uma diminuição considerável em relação aos números anteriores, 4.900 em 1938; 9.263 em 1937”, disse o ministro ao embaixador brasileiro em Berlim, Ciro de Freitas Vale, primo de Aranha. Segundo o livro, Vale se queixa da “displicência” do governo em relação à “invasão de judeus no Brasil”.

“A gente tinha muito pouca documentação relativa ao propósito do filme”, conta Caco Ciocler, que durante uma exibição do documentário dedicada à comunidade judaica, em novembro, fez uma comparação com Tubarão, de Steven Spielberg, ao dizer que em determinado momento das filmagens, nos anos 1970, a equipe concluiu que não poderia mostrar o robô que representava o animal, por ser muito ruim – e optaram por mostrar apenas a barbatana. “Deixa de ser um filme sobre tubarão e passa a ser sobre fobia, instinto”, observa Caco. “Não procurem pelo tubarão Aracy. A gente visitou a ausência de Aracy, tentou filmar essa ausência.”
documentos
Com aproximadamente uma hora e dez minutos, Esse Viver Ninguém me Tira foi exibido nos festivais de Gramado e do Rio de Janeiro e iria ainda para os de Recife e do Maranhão, antes de ser apresentado no exterior. No Brasil, os direitos de exibição foram adquiridos pelo canal pago Arte 1. Deverá chegar aos cinemas no ano que vem. Boa parte do material foi garimpada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP), onde fica o Fundo de Aracy, com 1.477 itens pessoais, como diários, cartas, fotografias, cartões-postais, documentos – e até dentes de gato.

Justa

Aracy está citada no Museu do Holocausto (Yad Vashem) entre os não judeus que ajudaram a salvar judeus da perseguição nazista – os “justos”. Ganhou um bosque com o seu nome em Israel. Em 1982, foi reconhecida como “Justa entre as Nações”. Além dela, figura o nome do diplomata brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas, que foi embaixador na França no mesmo período.

“Ela salvou meus pais”, diz no filme Marion Aracy, que ganhou o nome em homenagem à antiga funcionária do consulado em Hamburgo. O seu pai era Günter Heilborn, preso em 1938 em um campo de concentração. Inge, mulher de Günter, bateu à porta da representação diplomática e conseguiu ajuda. Obteve o visto e foi embora com Günter para o Brasil. Casaram-se no navio.

Assim como Margareth Levy, a Margarida, que conseguiu deixar a Alemanha graças a Aracy, de quem se tornou amiga até o final da vida. “Uma mulher tão corajosa...”, murmura Margarida no filme. As duas morreram aos 102 anos, em 2011. Margarida em fevereiro, Aracy em março. Nem tinha como saber da morte da amiga, porque sofria de Alzheimer havia muito tempo – às vezes, reconhecia o filho, Eduardo. Mas a ligação entre as duas mulheres atravessou o tempo e superou o esquecimento.
aracy e joão

Neto de Aracy e com o mesmo nome do pai, Eduardo lembra que sua avó também ajudou gente muito tempo depois. Comenta que ela foi contra “os nazistas na Alemanha e os fascistas no Brasil”. E recorda do episódio em que, já viúva, esconder em seu apartamento em Copacabana, no Rio, o cantor Geraldo Vandré, perseguido após apresentar sua canção Pra não Dizer que não Falei das Flores no Festival Internacional da Canção da Globo, em 1968. Do apartamento, ironicamente, dava para ver a movimentação no Forte de Copacabana.


“Minha mãe mais uma vez assumiu a defesa de alguém que estava precisando”, completa Eduardo Tess. Em um livro de poesias publicado em 1973 no Chile e ainda inédito no Brasil, Vandré homenageou Aracy. “A graça já se fez, amiga,/ E não vai se perder./ Só falta que eu bendiga/ e vou me preparar para cumprir/ a missão de agradecer/ além do verso e da palavra”, diz o trecho inicial.


Em uma carta, Aracy lembra de um episódio dos tempos em que o casal morava na praia do Russell, também no Rio. Guimarães procurava um título para seu livro, ela foi dormir. “Às 4 da manhã, assusto com você gritando: Ara, achei! Sagarana! Como ficamos alegres Esse viver ninguém me tira.” O livro saiu em 1946, primeiro ano do pós-guerra.

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