domingo, 4 de janeiro de 2015

O paradoxo do fim

Gustavo Gitti


Somos destruídos pelos mesmos jogos que valorizamos e alimentamos enquanto estamos radiantes


Uma separação começa muito antes de seus sintomas mais evidentes: não olhar nos olhos, transar superficialmente, não sonhar junto, não se ouvir direito… Todas as estruturas que corroem o relacionamento já estão presentes logo de saída — mais: são a base na qual a relação se constrói.


Temos a sensação de que o fim acontece porque o trem saiu dos trilhos; parece absurdo pensar que na maioria dos relacionamentos ele nunca chegou a entrar. Não sofremos porque fizemos algo errado. Sofremos porque quando estávamos felizes, supostamente fazendo tudo certo, já estávamos aflitos igual estamos agora, mas com uma chupeta na boca, tapando o choro, preenchendo a carência.


A mesma passividade pela qual nos sentimos arrebatados por aquela “química” de vida própria depois causará a sensação de que o sofrimento vem de fora, como se não fosse tecido por nós. Uma delícia quando o amor surge do nada; uma tragédia quando some do mesmo jeito.


A mesma lógica de mercado que usamos para avaliar benefícios de uma relação, comparando atributos antes de decidir, vai exigir que o outro funcione conforme anunciado ou substituí-lo por um produto com mais qualidades.


A mesma negociação que no começo nos faz ceder, tolerar, abrir mão, causa desânimo (visito os pais dela por obrigação em vez de prazer) e depois produzirá aquela conversa de reconciliação cheia de exigências e promessas: “Eu quero receber isso; o que você quer de volta?”


A mesma alucinação romântica que vê o parceiro como um ser especial, quase um amor de outras vidas, nos fará podar, rebaixar, diminuir, humilhar o outro, como uma punição por ele não ser tão perfeito quanto imaginamos.


O mesmo controle que adoramos reificar e divulgar — “Você é meu”, “Eu sou sua”, “Eu te conheço como ninguém” — depois se transformará em ciúme, claustrofobia, previsibilidade.


O mesmo apego pela experiência de felicidade (fluxo de ânimo, propósito, relaxamento, brilho no olho), cuja aparente satisfação nos cega para a importância de cultivar felicidade de modo autônomo, esvaziará os pulmões e a vontade de sair da cama assim que o relacionamento entortar.


Somos destruídos pelos mesmos jogos que valorizamos e alimentamos enquanto estamos radiantes. Tentar sair ileso é como pedir o côncavo sem o convexo. O fim trágico é só o outro lado do começo deludido.


Portanto, o melhor modo de seguir um relacionamento não é evitar erros, como se tudo já estivesse bem e apenas fosse preciso não estragá-lo, mas perceber o quanto já estamos estragados (passivos, autocentrados, negociantes). E começarmos a agir — agora, principalmente quando tudo parece bem.


Para reconstruir a relação em uma base ampla, menos dependente de tais dinâmicas confusas, talvez seja melhor viver mais perto do fim em vez de afastá-lo, como se fosse um mau sinal pensar de vez em quando “Nossa, como seria minha vida sem ela(e)?”


Na verdade, dedicar algum tempo imaginando essa outra vida nos leva a de fato construí-la, a viver em outra base, da qual vamos não só melhorar a relação, mas seguir na relação mesmo quando o namoro ou o casamento acabar.


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