quarta-feira, 10 de junho de 2015

De olho em dinheiro de turistas, falsos orfanatos enganam estrangeiros desavisados no Camboja


Crescimento do turismo no país causou fenômeno da multiplicação dos centros que acolhem crianças e adolescentes - 75% dos quais não são órfãos; Unicef e ONGs alertam para condições inadequadas e risco de exploração de crianças

O Centro da Paz tem um aspecto lúgubre para quem olha a partir do lado de fora. Uma grade verde cerca um pequeno pátio na parte térrea de um edifício de dois andares. Três dependências separadas dão para uma espécie de claustro onde entra uma luz tênue. A visita é inesperada, porém bem aceita. “Normalmente pedimos aos visitantes que nos telefonem antes, mas podem entrar”, diz Bophal, a proprietária do centro.
Dentro da casa, cerca de vinte crianças aprendem algumas palavras em inglês enquanto brincam com dois professores e uma voluntária norte-americana. Trata-se de um dos mais de 500 orfanatos que durante os últimos anos têm proliferado nos principais pontos turísticos do Camboja.
Cerca de metade deles não está registrada nos órgãos governamentais e funciona sem nenhum tipo de controle sobre suas atividades ou finanças. Os centros residenciais para menores começaram a se multiplicar no país asiático a partir de 2005. Cinco anos depois, eles praticamente tinham dobrado, segundo um estudo realizado pelo governo cambojano e pela Unicef em 2011.
O estudo aponta também um motivo para o aumento dos orfanatos em um país onde o número de órfãos diminuiu: o grande crescimento do turismo internacional ao longo desses anos. A explosão turística no Camboja começou em 2004, quando foi superada pela primeira vez a cifra de um milhão de visitantes estrangeiros. Em 2010, já eram 2,5 milhões, e neste ano o governo estima que chegarão a 4,7 milhões de visitantes estrangeiros.
A maioria dos orfanatos é na verdade um negócio, afirma James Sutherland da Friends International, ONG que se dedica a crianças vulneráveis no Camboja e que há vários anos vem promovendo uma campanha contra estes estabelecimentos.
Segundo ele, o Lighthouse Orphanage seria um exemplo disso. Situado na periferia da cidade, é um velho conhecido dos condutores de tuk-tuk, que transportam os turistas em reboques puxados por motocicletas. Basta subir no tuk-tuk, e o condutor sugere comprar um saco de arroz para levar para as crianças do orfanato. Os sacos de arroz, em sua grande maioria, comprados por turistas a preços exorbitantes, não são cozinhados e voltam intactos para a loja onde foram adquiridos. O proprietário da loja costuma ter um acordo com o orfanato e o condutor. O portal de viagens TripAdvisor, por exemplo, tem um tópico com comentários sobre o lugar.
“Não é necessário que você telefone antes, simplesmente venha”, informa o site do orfanato. Vários turistas brincam na área interna com as crianças e os ajudam com suas supostas lições escolares. Rithy, um dos empregados do centro, recebe os visitantes e lhes explica que o orfanato recebe ajuda do governo e que depende de doações. “Se você quer fazer um trabalho voluntário, pode ficar o tempo que quiser, porém é preciso pagar 15 dólares (cerca de 45 reais) por dia”, explica, sem pedir referências nem um projeto concreto para fazer com as crianças. “Você pode ajudar como quiser, dando aulas ou trabalhando na horta”, explica Rithy.
Muitos turistas chegam cheios de boas intenções ao Camboja, um país com 20% de sua população abaixo da linha da pobreza e uma das histórias mais sombrias do século 20. O capítulo mais obscuro foi o dos Khmer Vermelho, movimento que chegou ao poder em 1975 e exterminou cerca de dois milhões de habitantes – algo em torno de 25% da população daquela época – em menos de quatro anos. Em 1979, tropas vietnamitas derrubaram o governo de Pol Pot, porém vários grupos do Khmer Vermelho se fortaleceram em zonas fronteiriças, e a guerra civil continuou até 1999.

O país tem vivido desde então 15 anos de relativa calma, em que as condições de vida têm melhorado, ainda que camadas mais pobres da sociedade continuem vivendo em condições precárias. “Era de se esperar um aumento no número de orfanatos após os Khmer Vermelho, porque muitas crianças ficaram sem pais. Porém o lógico era que essa tendência tivesse mudado, e o que se viu é um aumento ainda maior desses estabelecimentos”, diz Sutherland.

Em três de cada quatro casos, inclusive, as crianças não são órfãs. Bophal confirma. “Não, a maioria não é órfã, porém vem de famílias pobres”, diz a proprietária do Centro da Paz, cuja página na internet se anuncia como orfanato.

Intermediários e funcionários de orfanatos percorrem os povoados mais pobres do Camboja em busca de famílias que não conseguem prover para todos os seus filhos. Prometem-lhes que cuidarão das crianças, dando-lhes educação formal e um futuro brilhante. A realidade encontrada nos orfanatos costuma ficar distante da imagem apresentada pelos intermediários às famílias. Com equipes de funcionários frequentemente escassas, as crianças ficam muitas vezes sem supervisão, não recebem o afeto adequado e têm um nível de educação formal menor do que a média do país, porque seus professores são em geral voluntários estrangeiros que permanecem apenas algumas semanas, diz a Unicef.

“Estes centros deveriam ser a última opção para as famílias, porém os agentes lhes convencem de que as crianças estarão melhor nos orfanatos”, diz Sutherland. De acordo com o estudo realizado pelo governo cambojano e pela Unicef, os orfanatos podem gerar “distúrbios de personalidade, atrasos no crescimento e na fala, e uma diminuição da capacidade para se reintegrar na sociedade” no futuro.

Muitos deles estão expostos a agressores sexuais, devido à falta de controle sobre os visitantes ou até sobre os funcionários. “O perigo dos orfanatos em relação à exploração sexual das crianças é real”, diz Ana Gabriela Pinheiro da ONG APLE Camboja. Um dos casos mais conhecidos foi o do britânico Nicholas Griffin, que foi condenado em 2011 a dois anos de prisão por abusar de crianças e adolescentes que estavam sob seu cuidado em um orfanato na cidade de Siem Reap.

ONGs como a Friends International e a APLE também afirmam que as crianças sofrem exploração trabalhista, já que muitas vezes são obrigadas a entreter os visitantes para que eles deem mais dinheiro. Assim acontece no Lighthouse Orphanage: as cerca de 90 crianças terminaram o dia que passamos lá com uma exibição de suas danças tradicionais para, dessa forma, derreter os corações e bolsos dos turistas.

Tradução: Mari-Jô Zilveti
Matéria original publicada no site do jornal espanhol El Diario.

Opera Mundi

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