segunda-feira, 8 de junho de 2015

Pare de perguntar se ela tem namorado

Pais, médicos e professores não sabem lidar com adolescentes homossexuais

CRISTIANE SEGATTO
08/06/2015

“Eu pensei que minha mãe ia aceitar. Aceitar, não. Porque nenhuma mãe aceita. Eu, se tivesse um filho, eu não aceitaria. Mas procuraria entender o porquê, o motivo. Acho que isso não é opção. Acho que ninguém fica nisso porque quer. 
Meu pai não me julga, não fala. Se não fosse por ele acho que eu estaria na rua. Porque a minha mãe já tinha me colocado pra fora de casa.”

Essa poderia ser parte da confissão de um criminoso. O tom envergonhado, de mea culpa, sugere desvio de conduta. Algo grave o suficiente a ponto de provocar total rejeição materna. Infelizmente, não é. Essas foram as palavras escolhidas por uma garota de 18 anos para relatar a experiência da homossexualidade durante uma pesquisa sobre saúde.

Se não é fácil se tornar adolescente, mais difícil é se descobrir homossexual na adolescência. No Brasil, poucos pesquisadores se dedicam a estudar o tema. Uma das exceções é a médica Stella Taquette, professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mãe de quatro filhas e avó de três netos, ela acaba de lançar o livro Homossexualidade e Adolescência sob a ótica da saúde (EdUERJ).

“A homofobia aumenta a exposição dos adolescentes a riscos de saúde”, diz Stella. “Com medo de terem a orientação sexual revelada e sofrerem rejeição, eles se isolam”, afirma Stella. Na entrevista abaixo, ela fala sobre os conflitos da adolescência – em especial entre os homossexuais. Conhecimento necessário num país que ainda se incomoda com a inclusão de casais homossexuais num simples e elegante comercial de TV.

ÉPOCA: Muitos dos problemas de saúde sofridos por adolescentes estão relacionados a sentimentos e sensações sexuais?
Stella Taquette: Sim. Na adolescência ocorrem diversas e rápidas mudanças corporais. Surgem novas sensações decorrentes do crescimento e desenvolvimento acelerado que transforma o corpo infantil num corpo adulto com capacidade reprodutiva.  Há uma intensificação dos sentimentos sexuais. Nessa fase, podem ocorrer dores abdominais, alterações urinárias, distúrbios do sono e do apetite, cefaleias que não têm nenhum substrato orgânico patológico. Esses sintomas são resultantes de inquietações a respeito do próprio corpo e sobre a normalidade ou não de alguma característica.

ÉPOCA: Os adultos não estão verdadeiramente abertos para ouvir os adolescentes?
Stella: A adolescência é uma etapa da vida de grande crescimento e desenvolvimento, não só do ponto de vista físico. Uma criança pensa de forma concreta. Não tem a capacidade de abstrair. Na adolescência, o pensamento evolui para o abstrato. Adquirimos competência para hipotetizar. Na infância, os filhos idealizam os pais. Acham que eles são super-heróis. Acreditam em tudo que dizem.

ÉPOCA: Na adolescência, eles passam a enxergar o mundo de forma mais real?
Stella: Sim. Enxergam a realidade com os próprios olhos. Passam a ter opiniões próprias que quase sempre são diferentes das dos pais. Esse é o principal motivo de conflito. Muitos pais não conseguem aceitar que seus filhos cresceram e que não concordam ou não valorizam mais as opiniões deles. Quase sempre esses pais não querem nem mesmo ouvi-los. É difícil deixarem de ser os “mais inteligentes” para os filhos e passarem a ser criticados.

ÉPOCA: Como lidar com esse conflito?
Stella: É preciso melhorar a qualidade da relação dos pais com os filhos. Os adultos precisam reconhecer os adolescentes como pessoas com identidade própria e dar crédito às opiniões deles.

ÉPOCA: Qual é o lado bom do distanciamento entre pais e filhos?
Stella: De certa forma, é saudável. Ele é importante para que o adolescente alcance identidade própria e autonomia para ser alguém independente da família. É importante que ele crie vínculos afetivos e amorosos fora do círculo familiar. Ao mesmo tempo, os adolescentes ainda precisam do porto seguro da família. Precisam recorrer a ela sempre que necessário. Os pais devem estar abertos para acolhê-los.

ÉPOCA: Que tipo de sofrimento emocional a descoberta da homossexualidade costuma provocar no adolescente?
Stella: A descoberta da atração sexual por outra pessoa (seja do mesmo sexo ou do sexo oposto) geralmente acontece na adolescência. É nesse período que também costumam ocorrer as primeiras relações sexuais com envolvimento genital. Quando um adolescente ou uma adolescente se percebe atraído sexualmente por alguém do mesmo sexo, se acha estranho, inadequado. Afinal, vivemos numa sociedade em que o “normal” é ser heterossexual. Todas as outras formas de ser sexual são rejeitadas. O que acontece? Esse adolescente tem dificuldade de se autoaceitar e de revelar o que sente à família porque aprendeu que o certo é namorar alguém do sexo oposto.

ÉPOCA: Os profissionais de saúde estão preparados para lidar com esses pacientes?Stella: Assim como a sociedade em geral, eles partem do princípio de que todos são heterossexuais. Dão pouca abertura para que um adolescente homossexual possa falar de suas dúvidas e inquietações. Muitas pessoas têm dificuldade de lidar com o tema da sexualidade porque ele desperta seus próprios sentimentos sexuais e pode causar certo desconforto. O mais comum é o profissional de saúde no atendimento de um adolescente do sexo masculino perguntar se ele tem namorada e vice-versa. Se for alguém com sentimentos homoeróticos não terá coragem de revelar por medo de ser rejeitado. O melhor seria perguntar se namora alguém.

ÉPOCA: Os homossexuais estão mais expostos a riscos de saúde que os heterossexuais?
Stella: Estão. A homofobia coloca esses adolescentes em risco. O fato de você se sentir diferente dos demais e do padrão do que se considera “normal” na sociedade em que vive já é um motivo de sofrimento e medo. Isso provoca um isolamento social que pode levar à depressão e até mesmo ao suicídio. Quando você se isola recebe menos atenção por parte da família, da escola, dos serviços de saúde. Perde-se a oportunidade de orientar e de prevenir os problemas mais comuns nessa faixa etária. A homofobia se manifesta muitas vezes de forma violenta com xingamentos, bullying, espancamentos e até mesmo homicídios. Na família não são raros os casos em que o adolescente é expulso de casa por ser homossexual. Outro problema observado nesse público é o consumo abusivo de bebidas alcoólicas e de drogas.

ÉPOCA: A sra. coordenou dois estudos com adolescentes homossexuais no Rio de Janeiro. Quais foram os principais achados?
Stella: No primeiro trabalho entrevistamos adolescentes de ambos os sexos que já tinham vivido experiências com alguém do mesmo sexo. Observamos o grande desamparo em que vive a maior parte desses adolescentes. É necessário e urgente que se desenvolvam ações de saúde e de educação para tratar o tema sexualidade de forma ampla e com respeito à diversidade sexual.

ÉPOCA: Na segunda pesquisa a sra. estudou todos os casos de aids diagnosticados na faixa etária de 13 a 19 anos na capital carioca desde o início da epidemia até 2009. O que descobriu?
Stella: Destacaria três pontos. Nesse período, houve mais casos em adolescentes do sexo feminino. Diferentemente do que ocorre em outras faixas etárias, o número de novas infecções em adolescentes homens que fazem sexo com homens está aumentando. O terceiro ponto: o principal infectante é o homem. Ou seja: as políticas públicas no campo da saúde sexual e reprodutiva precisam, de fato, incluir os homens.

ÉPOCA: Na última década houve diminuição de casos de aids entre os homens que fazem sexo com homens em todas as faixas etárias -- exceto entre os 13 e os 19 anos. Por que as campanhas não conseguem atingir esse grupo?
Stella: A vulnerabilidade desse público está associada a vários fatores. A imaturidade própria da faixa etária leva à descrença na possibilidade de infecção pelo HIV. A sujeição sexual, seja por violência ou desigualdade de poder na relação, impede a negociação do uso do preservativo. Outros fatores que os tornam mais vulneráveis à infecção são a homofobia e a exploração sexual comercial a que muitos adolescentes pobres estão sujeitos.

ÉPOCA: Como melhorar a atenção à saúde do adolescente homossexual?
Stella: Não precisamos criar serviços especializados. O que falta é capacitar os profissionais e preparar os serviços de saúde para que as necessidades de todas as pessoas sejam atendidas. Sem discriminação. Todos devem ser capazes de dar atendimento digno a toda e qualquer demanda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário