sexta-feira, 21 de agosto de 2015

#NiUnaMenos: feminicídios e violência contra mulheres ganham destaque na nova literatura argentina


Causa que levou milhões de pessoas às ruas em protestos no início de junho chega aos romances e contos de escritoras argentinas; autora de 'Chicas muertas', sobre assassinatos de mulheres, diz buscar 'colocar em palavras tanto horror'
Divulgação / Facebook Selva Almada

A escritora argentina Selva Almada, autora de "Chicas muertas" ["Garotas mortas"], que aborda os feminicídios recentes no país

“A manhã de 16 de novembro de 1986 estava limpa, sem nenhuma nuvem, em Villa Elisa, o povoado onde nasci e me criei, no centro e ao leste da província de Entre Ríos.” Assim começa o livro “Chicas muertas” [“Garotas mortas”, em tradução livre], da escritora argentina Selva Almada. O olhar cristalino sobre um povoado do interior escurece logo nas primeiras páginas: a lembrança dos 13 anos da escritora desfia como, dali a poucas horas, uma voz no rádio noticia o assassinato de Andrea Danne, de 19 anos, no povoado de San José, a apenas 20 quilômetros de Villa Elisa.
Desde então, a presença de Andrea não abandona a escritora. Na realidade, acaba por somar-se a todas as outras mulheres mortas que surgem nas páginas dos jornais: María Soledad Morales, Gladys Mc Donald, Elena Arreche, Adriana e Cecilia Barreda, Liliana Tallarico... Cada história é um mundo próprio, um ponto de interrogação, e, por sua vez, o mesmo final: garotas mortas.
[Capas das edições argentinas dos livros "Beya" e "Chicas muertas". Imagens: divulgação]
Na Argentina, o livro de Almada é único em narração e forma, mas não em temática. Nos últimos tempos, a literatura do país está reunindo histórias relacionadas à violência contra as mulheres, algo que foi cristalizado com a chegada do movimento #NiUnaMenos[#NemUmaAMenos, em tradução livre], após o assassinato de Chiara Páez, 14 anos, por seu namorado em maio deste ano na província de Santa Fé. “É um tema que nos preocupa, que está presente. É bastante natural que isto termine incorporado em livros que tratem de colocar em palavras tanto horror”, diz Almada. Em seu caso, Andrea, a primeira “garota morta”, atua como gatilho, porém ainda há todas as outras. “Nesta altura havia muitos anos que a violência contra as mulheres era um tema de preocupação constante para mim. Então pensei que contando as histórias destas mulheres podia dar conta desta preocupação, do espanto do feminicídio, de como vivemos as mulheres em sociedades como a minha”, conta.

Semelhante é a reflexão da escritora Gabriela Cabezón Cámara, que publica agora na Espanha “Y su despojo fue uma muchedumbre” [“E seu espólio foi uma multidão”, em tradução livre], um romance em quadrinhos, depois de ter tratado primeiro o abuso e os maus tratos em “Beya. Le viste la cara a Dios” [“Ela viu a cara de Deus”, em tradução livre]. Cámara, uma das principais ativistas do #NiUnaMenos, analisa por que a temática chega finalmente à literatura: “Não se pode escrever de fora da História, do emaranhado político e cultural no qual se vive. No caso de ‘Le viste la cara a Dios’, essa relação com a realidade da Argentina – e também, lamentavelmente, do mundo inteiro – é muito direta: os casos de tráfico de mulheres, dos crimes mais lucrativos da economia global hoje”, afirma.
Agência Efe
Manifestante durante marcha #NiUnaMenos em Buenos Aires, realidada no dia 03 de junho em várias cidades do país

Cámara define o movimento #NiUnaMenos como “uma maravilha, uma surpresa, uma alegria enorme, já que se gestou uma manifestação enormeem apenas três semanas. O repúdio à violência machista foi, podemos afirmar, um evento nacional”, sendo a cristalização de algo que permeia toda a sociedade argentina e que se demonstra tanto na ficção quanto na não ficção. “Não acredito que seja casual, tem a ver como o que está acontecendo no mundo, com essa tensão louca e contraditória. Por um lado, há mulheres como Angela Merkel, que governam meio mundo. E por outro lado, há mulheres compradas e vendidas como se fossem objetos”, reflete Cámara.
Tanto “Beya” quanto “Chicas Muertas” colocam o dedo na ferida de uma problemática social urgente. Cámara denuncia os maus tratos e o crime, porém também o negócio que sustenta o tráfico de mulheres. “Na Argentina, há o caso emblemático de Marita Verón, conhecido pela luta heroica de sua mãe, Susana Trimarco, para encontrá-la. Sabemos que uma rede de tráfico a sequestrou em 3 de abril de 2002, porém ela continua desaparecida. Algo deste caso, do horror e dos depoimentos de mulheres que foram resgatadas de redes de tráfico por Trimarco, está contado em ‘Le viste la cara a Dios’”, diz Cámara.
Almada, por outro lado, analisa o progresso na visibilidade: “Se uma mulher é assassinada por seu cônjuge, hoje fala-se de feminicídio e não de crime passional, por exemplo. Há penas mais duras para os feminicidas. Há entidades governamentais que ajudam as vítimas. Há mais informação. De qualquer forma, há muitíssima coisa a fazer, há muito o que pensar sobre o assunto... Como educamos nossos homens e nossas mulheres, por exemplo”, conclui.
Tradução: Mari-Jô Zilveti
Matéria original publicada no site do jornal espanhol El Diario.

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