quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Há uma dupla moral no Peru pela descriminalização do aborto por estupro

Gran Angular
Adital

Por Nylva Hiruelas

Assim qualifica o especialista Luis Távara a resposta da sociedade peruana frente ao debate da descriminalização do aborto por violação sexual. O médico especializado em Obstetrícia e Ginecologia acaba de publicar o estudo "Impacto da gravidez na saúde das adolescentes (Peru)", a cargo do Centro de Promoção e Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos (Promsex). Gran Angular conversou com o especialista para analisar o incremento da gravidez adolescente – segundo a Pesquisa Demográfica e de Saúde Familiar 2014 (ENDES), a taxa de gravidez adolescente aumentou 2,1% entre 2011 e 2014 – e o descumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio em saúde materna no Peru e sobre o aborto.

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Luis Távara, médico e especialista em gravidez na adolescência.

Na pesquisa que está publicando, se revela que 87,8% das adolescentes que ficaram grávidas foram fruto de relações sexuais voluntárias, e 80%, não foram nem planejadas nem desejadas. Em que está falhando o Estado? Que medidas de prevenção não se estão sendo disponibilizadas?
O primeiro dado deve ser tomado com cuidado. Porque há variáveis que ficam pendentes por redescobrir. Por exemplo, a idade média das adolescentes é de 15 anos, esta idade contrasta com a do seu par, que tem uma média de 22 anos. Os pares, com alguma frequência, se aproximavam delas e das famílias com presentes, pagavam seu colégio… então, existe sedução.
A respeito do outro, a educação, em geral, tem seus problemas, e mais ainda a educação sexual que, ou não se dá – que é o mais comum – ou se difunde de maneira inadequada por um pessoal que não está bem treinado. E como em casa praticamente não há educação sexual, então, as meninas se veem desprotegidas desse lado. Por outro lado, as adolescentes que usam anticonceptivos usam de maneira inadequada ou não usam. E há outro grupo de meninas que acredita que não vão ficar grávidas em uma primeira relação sexual.

No novo Código das Crianças e Adolescentes, o peso da educação sexual recai sobre a família e não sobre o Estado.
Os pais que trabalham fora de casa dificilmente têm um horário de encontro com os adolescentes, de outro lado, quem educa os pais em educação sexual e como a recebem? Ainda que é certo que seria o mais conveniente que sejam as pessoas mais próximas que se encarreguem disso; no entanto, no terreno prático, isso funciona muito pouco. Os professores deveriam ter um papel importante, obviamente os professores capacitados, treinados para dar educação sexual desde a mais precoce idade. Não deve se esperar que os adolescentes tenham 15, 16 anos, para oferecer educação sexual, é necessário informá-los desde crianças.

Também existe dificuldade para que muitas mulheres possam ter acesso à anticoncepção oral de emergência (AOE).
O Tribunal Constitucional decidiu dizendo que, em farmácias privadas, não há problema, ou seja, as pessoas que têm informação e meios econômicos podem adquirir. Em contrapartida, nos estabelecimentos de saúde, as mulheres que mais necessitam não podem recebê-lo.

A gravidez adolescente é considerada como um dos problemas de saúde pública de maior prevalência e importante. O Estado peruano está assumindo isso como tal?
O melhor exemplo de que isso é assim é que há um plano nacional concertado entre muitas instituições do Estado e privadas. Mas esse plano nacional não é cumprido, por exemplo, com a educação sexual. No existem ambientes, nem horários diferenciados nos estabelecimentos de saúde para atender às adolescentes, são oferecidos a elas o serviço em meio a toda a massa que concorre – que nem sempre é o melhor –, porque elas necessitam de um espaço de respeito à sua autonomia e dentro da privacidade e confidencialidade, e que lhes permita expressar-se com uma pessoa que vai lhes atender.

Na publicação, se destaca a importância do impacto da gravidez na saúde mental, algo que se deixa de lado porque sempre se centra na atenção exclusivamente à saúde física. Por que não se valoriza a saúde mental?
O que acontece é que, tradicionalmente, a atenção pré-natal, por exemplo, ou a atenção do parto se foca em um marco de saúde física: como está a pressão arterial, o crescimento do útero, os batimentos fetais, a posição da criança, isso se arrasta até o momento do parto, mas se descuida um pouco de qual é a vida emocional da menina; quais são suas preocupações, como anda o entorno familiar e social. Por isso se deixa de perceber que a meninas atravessa uma situação tremendamente difícil, começando porque é uma gravidez não desejada, não planejada, seguida da incerteza que vai passar durante a gravidez e o parto. Com que meios conta para poder atender às necessidades de uma criança que vem a caminho, se vai poder reinserir-se ou inserir-se em um trabalho, todas essas coisas angustiam a mente, e por isso é que 55% das meninas tiveram sintomas do lado emocional, tristeza, angústia, mal-estar, insônia, pesadelos, entre outros.

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Essa angústia que sente a adolescente ademais corresponde ao estigma social que existe por ser jovem e ficar grávida.
Desde a gravidez já há estigma social: em nível do estabelecimento de saúde, em nível das famílias, as amizades se distanciam. Não há suporte do lado emocional para essas meninas, obviamente, tudo isso representa, para elas, uma situação conflituosa, que afeta sua saúde emocional. Além disso, 77% das adolescentes abandonam seus estudos e 95% ou não trabalham ou deixaram de trabalhar.

A publicação revela que 25% das adolescentes grávidas se sentiram estigmatizadas pelo pessoal de saúde. Como pode ser abordado este tema?
O que ocorre é que também somos parte de uma sociedade que temos nossos preconceitos, e que cultivamos alguns valores e não cultivamos outros. Então, há uma falta de entendimento, uma falta de compreensão: a adolescente é responsabilizada por sua gravidez, é maltratada sem querer, muitas vezes murmurando pelas costas delas ou perto delas fazendo comentários em relação a que não deveria ter engravidado.

A meta de reduzir a maternidade no Peru em 66 mortes por cada 100 mil nascidos vivos, estabelecida dentro dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para 2015, não vai ser alcançada. Por que?
O mais provável é que não alcancemos. Têm sido feitos muitos esforços para reduzir a morte materna no Peru, lamentavelmente, estamos estancados há dois, três anos, e este ano há uma ligeira tendência incremental na mortalidade. A mortalidade entre as adolescentes cresceu, particularmente o suicídio na gravidez.
Cerca de 35 mil mulheres por ano, segundo estimativas, ficariam grávidas como resultado de uma violação sexual. A descriminalização do aborto por violação sexual será debatida na Comissão de Constituição. As razões sobram, mas o debate que se gera tem sido, em muitos casos, lamentável. Não sei que mais argumentos podem ser dados para que seja aprovada a descriminalização...
Claro, o que ocorre é que temos uma dupla moral. Aceitamos as coisas quando estão muito perto de nós, e as criticamos quando não estão perto de nós. Vou dar um exemplo prático, em um país muito próximo ao nosso, um colega patrocinava a interrupção da gravidez em determinadas circunstâncias, quando havia uma doença na mulher, quando havia uma enfermidade congênita incompatível com a vida e quando se tratava de um estupro. Um colega nosso também, de outra especialidade, a cada vez que podia, o criticava terrivelmente. Passou o tempo e um dia tocou o telefone da casa e recebeu a ligação deste colega, pedindo-lhe um favor. Contou a ele que, há pouco mais de um mês, sua filha de 15 anos havia ido juntamente com suas amigas a uma festa, e foram assaltadas por um grupo de homens. Estupraram-na e ela ficou grávida. O outro lhe perguntou como pedia esse favor se ele era contra isso, e lhe respondeu: isso é diferente.
O que quero dizer é que somos muito permeáveis quando tocam nas nossas portas, mas muito duros quando é com os demais. Existe muito preconceito, muita inflexibilidade.

Claro, mas com essa dupla moral, no fim, quem mais são condenadas são as mais pobres.
É assim, as que menos possibilidades têm. A menina que tem possibilidades, como as que mencionamos, finalmente conseguem uma interrupção da gravidez; o terrível é quando uma menina pobre termina por fazer isso em um lugar clandestino, em más condições, com o risco de adoecer e morrer.

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Em junho de 2014, foi aprovado o guia técnico do aborto terapêutico. Como foi o antes e o depois? Como está sendo implementado?
Antes, não havia facilidades de acesso, entretanto, há mais de 50 anos, dois hospitais (A Maternidade e o Hospital San Bartolomé) intervêm particularmente em casos de câncer de colo uterino, porque a lei aceitava no Código Penal – desde 1924.
Desde o fim do século passado, a Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia, instituições da sociedade civil, como o Promsex, participam, ativamente, em como promover o atendimento às mulheres que necessitam de uma interrupção da gravidez, e se conseguiu a partir de 2005 em diante. 15 hospitais – dentro do marco da lei – fizeram seu próprio guia dentro dos estabelecimentos e começaram lentamente a oferecer serviços, nos últimos cinco anos, de 2010 a 2014, foram realizados mais de 200 abortos terapêuticos, sem a existência do guia nacional. Eu confio em que, com o guia, as mulheres sintam um direito e os profissionais sintam que têm um dever: uma obrigação de oferecer serviços. Obviamente, o que está ocorrendo, agora, com atividades de capacitação, oferta de novas tecnologias, eu confio em que mais mulheres vão ter acesso à interrupção da gravidez por razões de saúde.

Fonte: Gran Angular

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