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domingo, 10 de janeiro de 2016

As sufragistas: um olhar afetuoso sobre mulheres que explodiam bombas

A atriz Carey Mulligan numa cena de As sufragistas: mulheres presas significam crianças sem jantar (Foto: Divulgação)











O filme feminista trata com perspicácia e carinho o radicalismo das operárias inglesas que lutaram pelo direito de votar no início do século XX

IVAN MARTINS
07/01/2016
Imagino que As sufragistas seja o primeiro de uma série de filmes feministas que veremos nos próximos anos. Assim como se fizeram no passado filmes grandiosos sobre as vitórias e derrotas da esquerda –quando a ideia de uma revolução socialista parecia possível e desejável -, agora é provável que as lutas femininas ocupem o tempo e a imaginação dos diretores de cinema. Há público para isso e o espírito do tempo assim exige. Poucas ideias são mais atuais que igualdade entre homens e mulheres.
(Antes de prosseguir, um aviso: o texto abaixo contém spoilers. Se você ainda não viu As sufragistas, saberá de coisas que talvez não queira saber.)
Não é fácil fazer filmes militantes. Eles tendem a mostrar personagens vazios, que falam e gesticulam com intenção apenas de explicar a justeza de uma causa. São chatos. A diretora Sarah Gavron e a roteirista Abi Morgan escaparam dessa armadilha. Quem dá fôlego à trama das Sufragistas são suas personagens -  operárias miseráveis que se organizam e se sublevam pelo direito de votar, sem deixar de ser mães e esposas. Mulheres com carne, ossos, contradições e sentimentos. Seres humanos inteiros, enfim. Num dos momentos mais tocantes do filme, uma das personagens, ao ser interrogada pela polícia, só consegue dizer, aflita, que precisa voltar para casa, porque é hora de servir o jantar para as crianças. Mais de 100 anos depois dos eventos narrados pelo filme, a mesma cena não aconteceria se no lugar da mulher estivesse um homem. 
Com muita perspicácia, As sufragistas mistura na história política as questões da maternidade, do matrimônio e do trabalho. Esses assuntos se fundem na vida das mulheres de uma forma que não acontece na vida dos homens. Estes ainda levam vidas compartimentadas, em que as atividades públicas e privadas são separadas umas das outras, e algumas nem existem – como preparar o jantar das crianças. Com as mulheres nunca foi assim. As questões da casa e da família se misturam ao cotidiano do trabalho e das lutas sociais, porque as tarefas domésticas estão a cargo das mulheres. Elas fazem a revolução enquanto preparam o jantar e põem as crianças na cama. Se um homem escrevesse o roteiro dasSufragistas o filme não teria o mesmo olhar para essas questões.
Houve alguma polêmica em torno do filme por causa da ausência de mulheres negras. A roteirista explicou que naquele momento da história britânica as operárias envolvidas na campanha pelo voto eram brancas, e quase não havia pessoas de outra cor no país. A explicação parece satisfatória, embora o realismo não tenha impedido o cinema de nos dar Elisabeth Taylor como Cleópatra, Charlton Heston como Bem-Hur e Ben Kingsley como Mahatma Gandhi. Todos magníficos. Quando quer, o cinema subverte radicalmente o realismo racial, e ninguém repara. Se uma das operárias do filme fosse negra ou asiática não haveria problema algum, e muita gente ao redor do mundo – inclusive no Brasil - se sentiria melhor representada.
Ao meu ver, a grande provocação de As sufragistas não está na cor de suas atrizes, mas no olhar desassombrado e afetuoso sobre o radicalismo político. Em tempos de hegemonia liberal, que abomina qualquer forma de violência política, é corajoso fazer um filme simpático a mulheres que hoje em dia seriam chamadas de terroristas. Historicamente, um segmento do movimento sufragista britânico partiu para a violência quando concluiu que as formas pacíficas de agitação eram insuficientes para chamar a atenção do público e romper o pacto de silêncio da imprensa em torno de sua causa. Primeiro, apedrejaram vitrines, como fazem os black blocs hoje em dia. Depois, colocaram bombas em caixas do correio. Ao final, suas explosões se aproximaram perigosamente dos figurões políticos – embora se preocupando em não fazer feridos. O filme acompanha os debates e as hesitações em torno dessa linha de ação sem tomar posição explícita. Mas a violência, no contexto da trama, parece emocionalmente justificada pelas injustiças e arbitrariedades a que as mulheres são submetidas.
Ao informar sobre a vitória do movimento na vida real – o direito de voto para as mulheres foi conquistado na Grã-Bretanha em 1918 - os letreiros finais do filme nos surpreendem. Contam que o sufrágio feminino foi aprovado no Canadá só em 1940. No México, em 1953. Na civilizada Suíça, apenas em 1970. Em termos de história, isso tudo foi ontem. Não espanta que as mulheres sejam tão sub representadas na política – e que as leis em toda parte ainda reflitam uma profunda e persistente discriminação contra elas. Quem não participa e não faz as regras não colhe benefícios do jogo político. No Brasil, onde o voto feminino foi aprovado em 1932, anunciou-se esta semana a construção do primeiro banheiro feminino no Senado. Nada poderia ser mais eloquente sobre o ritmo das mudanças e sobre o papel feminino na vida política do país.
Não sei se as mulheres que viram o filme terão reparado nas mesmas coisas que chamaram minha atenção. As duas com quem falei, uma na casa dos 30, outra na dos 40 anos, estavam mais impactadas pela opressão que o mundo tão recentemente reservava às mulheres – assim como pela coragem daquele grupo de lutadoras altivas e autônomas. As duas espectadoras, curiosamente, disseram a mesma coisa: que terminaram o filme sem palavras. Enquanto houver tamanha comoção, haverá outros filmes como As sufragistas.

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