sábado, 11 de junho de 2016

Lei do Feminicídio: reconhecer menosprezo será difícil para juristas se não houver perspectiva de gênero, afirma Ela Wiecko

Compromisso e Atitude       02/06/2016
Com a entrada em vigor da Lei Ordinária de nº 13.104, de 9 de março de 2015, o Código Penal passou a prever o crime de feminicídio – o homicídio contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, quando há: I – violência doméstica e familiar; ou II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
tipificação é vista por especialistas como uma oportunidade para dimensionar a violência contra as mulheres no Brasil quando ela chega ao desfecho extremo do assassinato, permitindo assim o aprimoramento das políticas públicas para coibi-la e preveni-la.
A correta aplicação da lei, porém, irá demandar a renovação de práticas setoriais e transformações culturais nos sistemas de segurança e justiça, para que os profissionais adotem a perspectiva de gênero necessária para compreender como a desigualdade entre o masculino e feminino resulta em violências diversas e, por vezes, letais. É o que explica a atual vice-procuradora-geral da República, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, em entrevista exclusiva ao Informativo Compromisso e Atitude.
Confira:
Poderia explicar essas duas condições que estão previstas nos incisos I e II da Lei que tipificou o feminicídio?
O primeiro inciso fala em violência doméstica e familiar, o que nos reporta à Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Para compreender esse inciso, nós, operadores do Direito, temos que olhar os requisitos que estão na Lei Maria da Penha e aplicá-los (veja abaixo).

A violência doméstica e familiar segundo a Lei Maria da Penha

De acordo com o art. 5º da Lei nº 11.340/2006, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
A Lei aponta ainda que há distintas formas de violência doméstica e familiar: física, sexual, psicológica, patrimonial e moral(saiba mais)
Do ponto de vista prático, é quase uma situação objetiva: se na investigação de um homicídio ficar comprovado, por exemplo, que a mulher já havia recorrido a um juizado especializado na aplicação da Lei Maria da Penha ou pedido uma medida protetiva de urgência; ou se na investigação for levantado que havia um histórico de violência em relações íntimas, não há a menor dúvida de que se trata de feminicídio.
Já o segundo inciso fala em menosprezo, em discriminação, incluindo então a violência que acontece entre pessoas que não se conhecem e, portanto, em que não se configura a relação íntima de afeto prevista na Lei Maria da Penha. Do ponto de vista prático, é mais difícil de comprovar que aquele ato de violência foi por menosprezo, pelo fato de a vítima ser mulher. Por isso, diante dessa hipótese, temos que estar muito atentos à forma como a pessoa é morta – esta forma pode revelar a discriminação, o ódio ao feminino. Por exemplo, quando há mutilações dos órgãos genitais ou partes do corpo associadas ao feminino, quando há violência sexual – todos esses elementos são indicativos desse menosprezo.
Este segundo inciso é o que tem gerado mais dúvidas na aplicação da Lei do Feminicídio. Em quais casos ele deve ser aplicado?
Um exemplo triste que ficou conhecido no país todo foram os estupros coletivos seguidos de tentativa de feminicídio em Castelo do Piauí. Ou seja, há o menosprezo em casos que estão ligados a um viés sexual muito forte. Mas é preciso lembrar que essa condição de menosprezo pode aparecer em diversas situações e, por isso, deve ser avaliada atentamente em cada caso que chega ao sistema de justiça.
Vamos pensar em uma briga de rua entre desconhecidos, em que um homem começa a desqualificar a mulher com palavrões, argumentos sexistas e de repente dá um tiro nela. Podemos pensar qual foi o peso da desqualificação da mulher neste cenário? Temos que refletir sobre o sexismo do homem, que levou a esse crescente de violência naquele momento até a tentativa de homicídio.
O menosprezo pode aparecer em mortes que tenham relação com uma organização criminosa em que se matem mulheres, como aconteceu no México, em Ciudad Juarez. Ou seja, dentro do ambiente de uma organização criminosa, em que muito excepcionalmente a mulher tem uma posição de relevo, ela é vítima porque é lida como alguém que tem menos condição de se defender, porque sua morte é uma maneira de fazer sofrer, de atingir a família.
No caso da prostituição também pode aparecer o menosprezo de um modo muito forte. Mesmo que a mulher exerça a prostituição por opção, ela é estigmatizada, e por isso fica muito vulnerável ao feminicídio.
E pode haver menosprezo associado à violência doméstica? Ou seja, um mesmo caso pode se enquadrar nos dois incisos?
Pode, mas avalio que isso não fará uma diferença prática em termos da qualificadora. No limite, na violência doméstica também há o menosprezo à mulher. Mas o reconhecimento desse menosprezo demanda a construção de um entendimento comum do lugar da mulher dentro da sociedade em uma situação de inferioridade nas relações de poder. E nem sempre esse entendimento está claro no sistema de justiça.
Vale lembrar o caso da Luana Piovani, em que interpretaram a vulnerabilidade como algo que seria econômico, individual, e não como uma questão que atinge todas as mulheres em sociedades sexistas. Reconhecer que existe um menosprezo será difícil para juristas se não houver a perspectiva de gênero.
Por isso é importante ter as duas leis: a Lei Maria da Penha, que já abriu o caminho e definiu alguns elementos de modo bastante objetivo; e a Lei do Feminicídio, que reforça esse entendimento diante da violência mais extrema.
Qual é a importância da perspectiva de gênero no enfrentamento ao feminicídio?
Existe hoje em dia toda uma campanha reacionária contra o uso da palavra gênero, tentativas de retirá-la de leis em que já consta. Mas é importante pensar qual é a importância da palavra gênero? Ela é importante porque é uma categoria relacional. No caso da ‘condição do sexo feminino’, acaba ficando muito forte a ideia de que sexo é um conceito biológico, natural, e ocultando que há relações desiguais de poder que são construídas e que resultam repetidamente em violências. Entender isso é fundamental para o enfrentamento dessas violências.
Usando gênero pode-se inclusive ampliar a incidência da Lei do Feminicídio para incluir as mulheres trans. Mas de um modo geral essa é uma categoria que apavora todas essas pessoas que não querem debater que gênero é cultural, que encaram como um perigo essa relativização de coisas que querem afirmar como naturais. E, por outro lado, as pesquisas têm mostrado (leia mais) que podemos até interpretar a palavra sexo com o mesmo conteúdo de gênero, pensando nesse aspecto de questões relacionais que são construídas e, portanto, podem ser modificadas.
Se para a correta aplicação das leis é importante pensar a mulher não apenas no aspecto biológico, mas justamente compreender a condição da mulher em relações sociais que são discriminatórias, como a tipificação do feminicídio incide nesse quadro? Ela pode contribuir para reverter as altas taxas de feminicídios no Brasil?
Não sei se a tipificação por si só irá reduzir essas taxas, somente pesquisas poderão aferir se uma qualificadora diminui o crime. Mas é fundamental ter a nominação do feminicídio, pois ela vai quebrando um paradigma da linguagem do Direito, que é sexista, e é sexista justamente por ser pretensamente assexuada. Na verdade, vai quebrando esse ‘neutro’, esse ‘alguém’ em quem não conseguimos ver as mulheres. Não conseguimos ver as mulheres nas lesões corporais que acontecem, e nem nos homicídios. Visibilizar é muito importante, o simbólico é a força dessa tipificação.
A vida é um bem jurídico que a Constituição manda proteger e manda criminalizar os atentados contra ela. Tipificar, nesse caso, é proteger melhor. Não vejo o aumento de pena como um problema nesse caso, não é algo que está em confronto com minhas outras ideias de que temos que diminuir o sistema penal. Sabemos que há um aumento do controle penal muito desproporcional. Mas aqui estamos falando do crime contra a vida das mulheres, estamos falando de matar alguém. Então não me parece ser a matéria ideal para contestar o Direito Penal.  A mulheres estão querendo seus direitos, elas querem ser melhor protegidas.
Essa tipificação pode ajudar a desconstruir paradigmas discriminatórios nos tribunais, teses como a ‘legítima defesa da honra‘ ou a violenta emoção, que ocultam a desigualdade de gênero e, pior, acabam até culpabilizando a mulher pela violência que sofreu?
Com certeza, mas isso vai depender muito de como será realizada a investigação, de como os sistemas de segurança e justiça – a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário – vão atuar na aplicação da lei. Coordenei recentemente um curso de extensão piloto de implementação das Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios. Nesse curso mostramos que desde a investigação é preciso checar a hipótese do feminicídio e trazer os elementos que vão mostrar se aquele caso se trata de fato de um feminicídio.
Quando uma mulher é morta há uma série de procedimentos que precisam ser adotados – é preciso fazer um exame de local, e não só do corpo, uma investigação completa sobre eventos anteriores, entre outras coisas. Esses são cuidados necessários para que não se crie possibilidade para o uso equivocado da tese da violenta emoção, que é uma tese que olha somente para o ato final, que muitas vezes não teve testemunha – ignorando toda uma situação pretérita, ignorando uma série de detalhes.
Isso quer dizer que temos que trabalhar muito na prática, atuar com nossas equipes para que tenham perspectiva de gênero e para criar uma prática que afaste essas teses que são comuns e, muitas vezes, revitimizam a mulher.

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