sexta-feira, 10 de junho de 2016

Prisão Civil em Alimentos indenizatórios: Posição Favorável

03/06/2016 por Fernanda Tartuce
A questão em análise pode ser apresentada de forma singela: a proteção máxima conferida aos alimentos (com possível execução sob pena de prisão) é pertinente apenas ante a inadimplência de alimentos baseados em vínculos familiares ou incide também sobre a falta de pagamento de pensões decorrentes de ato ilícito fixadas em demandas indenizatórias?

Embora perguntas simples possam inspirar respostas do mesmo tipo, é interessante lembrar que nem sempre todos os pontos relevantes do questionamento são considerados em abordagens singelas. Uma forma que pode contribuir para uma análise mais elaborada é contextualizar a dúvida à luz de certo caso; tal perspectiva é valiosa por concretizar a hipótese e permitir uma apreciação humanizada da situação. Considere que Jodeilde, aos 8 anos de idade, restou órfã após seus pais falecerem no acidente de veículos causado por Lupércio; este foi posteriormente condenado, em demanda indenizatória, a pagar alimentos de dois salários mínimos mensais à criança com base no art. 948, II do Código Civil (“no caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima”). Não tendo havido o voluntário pagamento do valor devido a Jodeílde a título de obrigação alimentar, cabe executar Lupércio sob pena de prisão?

A Constituição Federal prevê, no art. 5º LXVII, que não haverá prisão civil por dívida - salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.

A regra se justifica porque o instituto dos alimentos tem por base valores importantes: dignidade, urgência e solidariedade humana são vetores interpretativos primordiais para o adequado delineamento de respostas a eventuais dúvidas surgidas na aplicação das normas sobre o tema.

A dignidade é contemplada porque, sem condições de contar com um patrimônio mínimo que assegure o acesso a bens essenciais, não há como exercer de modo eficiente o direito à autodeterminação. A urgência é evidente, já que o pagamento da pensão alimentícia serve para suprir as necessidades cotidianas da pessoa dependente. A solidariedade humana, enquanto amparo e dever assistencial, é uma exigência do sistema jurídico porque, infelizmente, nem sempre há espontaneidade no devotamento de cuidado aos necessitados. Se o ordenamento jurídico reforça a solidariedade em relação a parentes (em relação a quem, por haver vínculo, existe maior chance de prestação de auxilio mutuo), obviamente deve haver ainda maior estímulo quando não há proximidade que anime o devedor a auxiliar o credor da obrigação alimentar.

À luz de tais considerações, pergunta-se: Jodeílde precisa que a norma constitucional incida em seu favor? Para atender à sua dignidade com urgência, considerando que é remota a chance de Lupércio mostrar solidariedade em relação a uma órfã com quem não tem liame parental, a resposta é evidentemente positiva.

Quando a Constituição Federal menciona a possibilidade de prisão em virtude do inadimplemento voluntário e inescusável da obrigação alimentar, não faz distinção quanto à fonte; revela-se essencial, portanto, considerar o conteúdo (obrigação alimentar inadimplida voluntária e sem escusas) e não a origem (relação familiar ou ato ilícito).

No plano infraconstitucional, os dispositivos que preveem prisão por inadimplemento de pensões alimentícias não apresentam restrições à incidência do encarceramento; não há expressa diferenciação em relação aos casos ligados à seara familiar.

O Código de Processo Civil não tem tradição de limitar a incidência da prisão à execução de alimentos referentes a contextos familiares. Confirmando tal tendência, o Novo Código de Processo Civil refere-se hipóteses ligadas a pensão alimentícia como sendo referentes à exigibilidade da obrigação de prestar alimentos; a expressão, que é ampla, não expressa qualquer distinção em relação à fonte da obrigação.

O Novo Código traz ainda mais um ponto em favor da posição aqui defendida: o art. 533, ao mencionar a possibilidade de constituição de capital em demandas reparatórias que preveem alimentos indenizatórios, foi inserido no capítulo regente da execução de prestações alimentares em geral; percebe-se, portanto, que o legislador, longe diferenciar pensões alimentícias, atuou no sentido de aproximar seus regimes executivos.

Vale também destacar que o Novo Código buscou incrementar ainda mais a efetividade da execução alimentícia ao prever o protesto do nome do executado e afirmar que a justificativa do executado precisa expor a comprovação de fato gerador da impossibilidade absoluta de pagar a pensão devida (Lei 13.105/2015, art. 528 §§ 1º e 2º).

Não há no ordenamento, portanto, norma que justifique a diferenciação apta a excluir a possibilidade de prisão no inadimplemento de obrigações alimentares fixadas a título de reparação por ato ilícito; interpretação diversa prejudica indevidamente as vítimas de atos ilícitos ao retirar a eficácia potencializada pela coerção inerente à execução sob pena de prisão.

A execução de alimentos engendrada no sistema jurídico brasileiro, como autêntica tutela diferenciada, visa propiciar maior efetividade à proteção de um direito considerado especial pelo ordenamento.

Apesar disso, há quem responda negativamente à pergunta, afirmando haver restrições à incidência da prisão. Há diversas decisões nesse sentido; muitas delas, porém, não enfrentam os argumentos expostos, limitando-se a afirmar, sem maiores digressões, que a possibilidade de requerer a execução sob pena de prisão deve ser considerada em perspectiva restritiva, sendo pertinente apenas em casos de inadimplemento verificados em contextos familiares. É possível crer, porém, em mudança no cenário jurisprudencial: cada vez mais há entendimentos prestigiando a concretização de compreensões que conduzam a um “processo civil de resultados”.

O posicionamento pela impossibilidade de execução sob pena de prisão no caso de alimentos decorrentes de ato ilícito distancia o intérprete da missão protetora do processo; a tutela jurisdicional precisa funcionar bem, incidindo seus ditames de modo eficiente em prol de quem vive a árdua situação de precisar exigir alimentos em juízo.

Espera-se que a triste situação de vítimas como Jodeílde - que precisará recompor sua vida em um cenário marcado por significativas restrições - não seja piorada pela falta de efetividade da execução alimentícia que precisará promover em face do devedor que, de modo voluntário e inescusável, restar inadimplente.

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