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quinta-feira, 7 de julho de 2016

A cultura do estupro e a instrumentalização do corpo

05/07/2016 por Luiz Flávio Gomes
O Brasil nasceu sob o império da escravidão e do abuso sexual da mulher. Ambos foram naturalizados em nossa brutal cultura colonial, por falta de “domesticação do humano” (Nietzsche). Nesse sentido, somos culturalmente (ainda) macacos numa loja de louças (seja na direção dos veículos, seja com uma arma na mão, seja no comportamento social, seja no campo sexual etc.). Nossa sociedade (como um todo) continua sendo em muitos aspectos uma “monstruosidade social”.

Diferente de outras civilizações (a inglesa, por exemplo, quando ocupou a América), a ibérica “recrutou povos bárbaros e semibárbaros, arrancados do seu habitat natural e incluídos, sem transição, noutra civilização inteiramente estranha” [mas também bárbara]. O que se podia esperar? Caio Prado Jr. Ensina que:

A escravidão no seu pior caráter, o homem reduzido à mais simples expressão, pouco senão nada mais que o irracional. ‘instrumento vivo de trabalho’, o chamará Perdigão Malheiro. Nada mais se queria dele, e nada mais se pediu e obteve que a sua força bruta, material. Esforço muscular primário, sob a direção e açoite do feitor. Da mulher, mais a passividade da fêmea na cópula. Num e noutro caso, o ato físico apenas, com exclusão de qualquer outro elemento ou concurso moral. A ‘animalidade’ do homem, não a sua ‘humanidade’[1].

O mesmo autor leciona ainda que:

Bastava o mais simples esforço material. É o que se exigiu de negro e de índio que se incumbiriam da tarefa. Correndo parelhas com esta contribuição que se impôs às raças dominadas, ocorre outra, este subproduto da escravidão largamente aproveitado: as fáceis carícias da escrava para a satisfação das necessidades sexuais do colono privado de mulheres de sua raça e categoria. Ambas as funções se valem do ponto de vista moral e humano: e ambas excluem, pela forma com que se praticaram, tudo que o negro ou o índio poderiam ter trazido como valor positivo e construtor de cultura[2].

Dois casos dramáticos de estupro (recentemente) tiveram imensa repercussão nas mídias (incluindo as redes sociais). Uma adolescente de 16 anos no RJ foi estuprada por um grupo de rapazes (talvez dois grupos) e vários vídeos foram difundidos na internet. No Piauí, outra adolescente, de 17 anos, foi estuprada por quatro rapazes. O chocante, nos dois casos, foi a reação de "normalidade", de "naturalidade" do estupro. Os agressores entenderam que se praticava algo “normal”, que se podia publicar isso na internet “sem problema”, como se fosse um troféu conquistado.

A cultura “machista” do estupro tenta “justificar” o bárbaro ato afirmando: "Ela provocou”, “ela estava de saia curta”, “ela não deveria sair sozinha”, “ela não deveria estar na rua naquela hora”, “ela não deveria ter bebido” ou “ela é uma mulher fácil” – quando surge esse tipo de comentário que coloca em dúvida a denúncia da vítima, estamos diante de um traço da famigerada cultura do estupro[3].

“O corpo é meu e faço dele o que quero”

A cultura do estupro das mulheres (um a cada 11 minutos) assim como o massacre machista contra elas (com números estarrecedores no Brasil; desde logo, de 13 a 15 mulheres são assassinadas diariamente) decorre de muitos fatores (culturais, políticos, sociais etc.). Um deles, por incrível que pareça, diz respeito ao uso indevido pelos operadores jurídicos de uma tese libertária feminista (igualitarista), que diz: “O corpo é meu e dele faço o que eu quero”.

Isso é afirmado por todos os feministas (igualitaristas), sobretudo quando em pauta está, por exemplo, o direito ao aborto. No entanto, a mesma tese é usada pelos “machistas” para “justificar” o estupro e o massacre contra as mulheres quando elas, por exemplo, não “denunciam” o delito sexual ou quando não querem o prosseguimento de uma ação penal (no caso de violência machista).

O que se diz na prática? “O corpo é dela e ela faz o que quer com ele”. Até mesmo familiares das vítimas, às vezes, dizem isso (quando elas são maltratadas pelos “machos”). Como se vê, usa-se uma tese sustentada pelos feministas (igualitaristas) em sentido contrário, em sentido invertido. O que foi imaginado para o empoderamento das mulheres é utilizado para “naturalizar” o abuso delas.

O tópico (o sentido comum: “o corpo é meu e faço dele o que quero”) é bem-intencionado. Na prática, no entanto, ele é usado de forma nefasta. Daí a validade de se indagar o seguinte: o nosso corpo é realmente nosso?

Do ponto de vista individual (das nossas escolhas) poderíamos dizer que sim (“bebo porque quero, fumo porque me apetece, como excessivamente porque isso me apraz, me drogo porque desejo” etc.). Mas do ponto de vista social há muita gente e muitas entidades que querem se apropriar (e se apropriam) dos corpos humanos. Acham que são donos deles. 

Quando certas ideologias pretendem se apoderar das nossas mentes (a ideologia comunista da antiga União Soviética, por exemplo) nós prontamente reagimos. Mas o tempo todo muitos querem se apropriar (e frequentemente se apropriam) das outras partes do nosso corpo (sem que haja reação). Já prestou atenção nisso?

Ao longo da História (e das ideologias) muita gente disse o que nossos olhos devem ver (não veja isso, não veja aquilo), o que os nossos ouvidos devem ouvir (não ouça isso, não ouça aquilo), o que nossas línguas podem falar (não fale isso, não fale aquilo), o que nossas mãos podem fazer (não faça isso, não faça aquilo, não toque nisso, não toque naquilo), onde nossos pés podem pisar, o que devemos pensar etc.[4]  

Entre o eu e o corpo interferem a religião, a educação, a medicina, a dietética, a ginástica, a higiene, a cosmética etc. Os poderes econômicos extrativistas usam os corpos daqueles que são obrigados ao trabalho escravo, ao tráfico de mulheres ou de crianças. Os chefes do tráfico usam os corpos de crianças para promoverem o tráfico. O poder político, pela biopolítica (Foucault), interfere todos os dias nos nossos corpos (vacinação, uso de cinto de segurança, controle de doenças, restrição de alimentação, participação em guerra, humano-bomba etc.).

Nosso corpo não passa de um instrumento nas mãos dos exploradores ou da biopolítica do Estado. Estado, fábrica, escolas, quartéis, cidades... todos querem disciplinar nossos corpos (úteis e dóceis – diria Foucault).

Desde a construção do Estado moderno, em todas as épocas e em todos os regimes, fica sempre a pergunta sobre qual corpo que a sociedade (de cada momento) necessita[5].

Diante de tanta interferência nos nossos corpos, a tarefa mais urgente consiste em nós nos apropriarmos dele. Sejamos todos nós os que mandam (ou mandamos) nos nossos corpos. Temos que nos emancipar de todos aqueles que querem conduzir os nossos destinos ou os destinos do nossos corpos. Isso significa liberdade. Liberdade frente a todas as ideologias de submissão. Qual o problema? No afã de nos libertarmos, podemos estar nos submetendo a um grande risco, qual seja, o de objetivizar o corpo, o de coisificar o corpo.

O corpo humano, no entanto, não é considerado pelo Direito vigente como uma propriedade privada. Ninguém pode tê-lo como propriedade particular, como se fosse mais um objeto do mundo terráqueo. Não se trata de um mero instrumento (sobretudo dos poderes econômico e político). O corpo humano não é uma exterioridade autônoma e independente da pessoa humana digna. A relação entre o “eu” (dotado de dignidade humana) e o corpo é de identidade absoluta. Não é possível desgrudar um do outro. Ao Direito cabe dizer o que é permitido fazer com ele, mas jamais se pode negar a dignidade humana que é inerente ao corpo humano.


[1] Ver PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 288-289.
[2] Ver PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 290.

[4] Cf. ARTETA, Aurelio. Tantos tontos tópicos. 4. ed., Barcelona: Ariel, 2012, p. 41.
[5] Cf. ARTETA, Aurelio. Idem, p. 42. 

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