Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

sábado, 16 de julho de 2016

Cinco mulheres vão reger a melhor orquestra brasileira em 2016

O fato inédito mostra uma mudança de compasso na música clássica
NINA FINCO
15/07/2016
Mente Aberta Maestrinas montagem (Foto: Montagem de Daniel Graf sobre fotos de: Eliária Andrade/Agência O Globo, Allen J. Schaben/Los Angeles Times Via Getty Images, Werther Santana/Estadão Conteúdo e divulgação (2))
Mente Aberta Maestrinas montagem (Foto: Montagem de Daniel Graf sobre fotos de: Eliária Andrade/Agência O Globo, Allen J. Schaben/Los Angeles Times Via Getty Images, Werther Santana/Estadão Conteúdo e divulgação (2))


Em 1916, Gloria recebeu um convite para cantar na ópera La bohème, em Roma, na presença do autor, Giacomo Puccini. Todos os elogios que recebeu dos professores de canto e piano ao longo da vida se provaram verdadeiros. Aos 17 anos, seu maior sonho estava a uma passagem de trem de distância. Mas Gloria tinha contas a prestar. Criada por um tio, sabia que devia retribuir o favor cumprindo as obrigações de uma boa moça: casar-se e ter filhos. Gloria escolheu a honra e recusou-se a cantar – para sempre. Viveu quase 100 anos, sem nunca mais entoar uma nota. Guardou a voz para si, mas não resistia ao piano. Em casa, se aprumava como se fosse subir ao palco, sentava-se na banqueta e batia as longas unhas femininas e bem cuidadas contra as teclas. “Eu era muito pequena quando a conheci e mesmo assim conseguia perceber que faltava algo naquela imagem dela ao piano”, diz a regente italiana Valentina Peleggi, bisneta de Gloria. “Hoje, entendo e sei quanto sou sortuda. Eu não preciso escolher entre a família e a música. Posso ter os dois.”
Valentina é uma das cinco regentes que vão conduzir a Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) durante a Temporada de 2016. Ter meia dezena de mulheres no comando de  orquestras e coros num mesmo programa sinfônico é algo inédito no mundo. Cada vez mais, as Glorias encontram espaço no mundo machista da música clássica. O pódio que resistia como um bastião hegemonicamente masculino vem se rendendo ao balanço de suas batutas.
O programa deste ano tomou forma sob o comando da americana Marin Alsop, diretora musical e regente titular da Osesp desde 2012. Além dela e de Valentina, sobem ao palco a brasileira Naomi Munakata, a venezuelana Maria Guinand e a francesa Nathalie Stuzmann. Essa não é a primeira iniciativa de Marin para estimular a presença de mulheres à frente dos músicos. Em 2002, ela criou o Taki Concordia Conducting Fellowship, um programa de apoio de carreira, orientação e desempenho para regentes mulheres iniciantes – do qual Valentina participa. “Quando comecei a conduzir, quase não havia mulheres nesse ramo”, afirma Marin, que se tornou, em 2013, a primeira mulher (em 118 anos) a reger a “Last night of the proms”, parte do festival de verão londrino promovido pela BBC. “O mais desafiador é conseguir oportunidades. Para ter sucesso, a pessoa precisa falhar. Mas, se você tiver apenas uma chance e não tiver êxito, não terá como voltar.”
A regente e contralto Nathalie Stuzmann se encontrou numa situação como essa. Aos 15 anos, estudava para ser regente numa classe repleta de homens em Paris. Parte do programa consistia em conduzir uma orquestra na prática, para ganhar experiência. No entanto, o professor de Nathalie nunca lhe ofereceu a oportunidade. “Naquele momento, ficou claro que seria dificílimo conseguir algo maior sendo mulher e regente”, afirma. “Eu desisti das aulas e torci para que, dali a alguns anos, em outro lugar talvez, houvesse pessoas de mente aberta que proporcionassem mais oportunidades às mulheres.” Nathalie só voltou a se dedicar à batuta após receber um prêmio por sua atuação como contralto aos 20 anos. Em 2014, tornou-se a primeira mulher a conduzir a Orquestra Sinfônica de Castilla y León, da Espanha.
Apresentação da Osesp sob regência de Marin Alsop (Foto: Daniel Teixeiras/Estadão Conteúdo)
A presença feminina no comando de orquestras vem experimentando um breve crescendo, mas posições como a do professor de Nathalie se repetem vez ou outra, em pleno século XXI, mostrando que o machismo ainda é uma nota desafinada na regência da música clássica. Em 2012, em entrevista a um jornal russo, o maestro Yuri Temirkanov, que dirigiu a Orquestra Sinfônica de Baltimore, nos Estados Unidos, entre 1999 e 2006, disse que “a essência da regência é a força, e a essência da mulher é a fraqueza”. Temirkanov foi substituído por Marin Alsop em 2007. Seu conterrâneo, Vasily Petrenko, regente da Orquestra de Liverpool, na Inglaterra, deu, em 2013, sua contribuição a esse discurso: “Uma mulher bonita no comando faz com que os músicos pensem em outras coisas”, disse a um jornal norueguês.
É difícil estimar o número de mulheres regentes no mundo. Um levantamento feito em 2013 pela League of American Orchestra junto a orquestras dos Estados Unidos mostrou a existência de uma mulher regente para cada 21 homens. “As Américas, a Austrália e a Nova Zelândia são mais abertas à presença de mulheres no pódio do que a Europa”, afirma Holly Mathieson, regente assistente da Orquestra Nacional Real Escocesa e Ph.D. em iconografia musical. “Talvez seja simplesmente pela tradição. Preconceitos como esse são menos enraizados em países mais jovens.” Isso se reflete na percepção de Marin, Naomi e Maria. Em seus depoimentos a ÉPOCA, as três relataram pouco contato com preconceito de gênero. “A sociedade matriarcal de meu país me ensinou a ser mais organizada”, diz a venezuelana Maria Guinand. Por causa disso, ela rege os mais prestigiados corais da Venezuela, cujas turnês rodam o mundo todo, e ainda cuida da família. “Quando meu primeiro filho estava com 1 ano, saí em turnê pela Europa por 45 dias. Deixei-o com meu marido”, diz. “Ele cuidou do bebê por dois dias e teve de buscar uma babá. E olha que eu havia deixado folhas coladas na parede detalhando todas as tarefas dele.”
Um levantamento feito com orquestras americanas mostrou uma mulher regente para 21 homens
Na carreira de regente, a possibilidade de ser mãe também é uma das razões que mais afastam as mulheres do mercado de trabalho. Além da cansativa jornada dupla, a crença predominante é que a dedicação profissional que se exige de uma regente se opõe à maternidade. Em 1997, a Filarmônica de Viena, uma das orquestras com menos igualdade de gênero do mundo (tem apenas nove mulheres entre seus músicos), introduziu um sistema de reaudição para as mulheres que retornassem da licença-maternidade. A justificativa? O receio de que uma longa pausa da musicista ameaçaria a “continuidade artística” da orquestra. No artigo “A difficult birth” (“Um parto difícil”, em tradução livre), o musicólogo americano William Osborne afirmou que a reaudição era “uma forma sutil e quase voyeurista de teste de gênero” com o objetivo de desencorajar as mulheres a entrar na orquestra.  Ficar longe dos filhos por muito tempo também é uma barreira. A Filarmônica de Berlim, orquestra com a maior agenda de turnês da Alemanha, tem apenas 14% de mulheres em seu corpo musical.
Para se esquivarem do tratamento (nada) especial reservado às mulheres na música clássica, aquelas que chegam ao papel de regente adotam características consideradas masculinas para garantir o respeito dos músicos. “Há uma crença estereotipada de que homens são mais autoritários. Portanto, um homem no pódio seria mais crível”, afirma Lesley Leighton, diretora do curso de regência de coro da Escola de Música da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Com 1,77 metro, corpo robusto e voz grave, a francesa Nathalie sente que se impõe naturalmente. “Nunca precisei forçar minha autoridade. Mas para outras mulheres, muitas vezes, é mais difícil”, diz. A regente honorária do coral da Osesp, Naomi Munakata, afirma que, no palco, a mulher não pode deixar de ser quem ela é apenas para causar boa impressão. “Há mulheres que acham que é preciso reger como um homem, mas não se deve mudar a postura para impor mais respeito”, afirma.


Para a musicóloga americana Micaela Baranello, a visão de que a posição de regente requer liderança e carisma – qualidades tradicionalmente rotuladas como masculinas – tem raízes históricas. “Maestros tornaram-se grandes celebridades no final do século XIX e começo do século XX”, afirma. “Isso ocorreu ao mesmo tempo que o repertório sinfônico se aglutinou em torno de um cânone de obras clássicas.” Na ausência de um compositor vivo – outra figura tradicionalmente masculina –, o regente assume parte da autoridade do compositor, tornando-se o intérprete principal e servindo como intermediário entre o compositor e o público.
Nada impede que esse intermediário seja uma mulher – ou, no caso da Osesp, cinco. A chegada delas a seus postos de regente reflete uma mudança de compasso. Enquanto o mundo da música clássica continua preso a alguns anacronismos, a sociedade está transformando seus hábitos. Em 1937, um estudo sobre a audiência americana de concertos mostrou uma média de 30 anos de idade. Em 2012, de acordo com a agência americana National Endowment for the Arts, o público não só diminuiu, como também envelheceu. A média atual é de homens e mulheres entre 65 e 74 anos. Se não quiser tornar-se dissonante, a música clássica terá de se ajustar às exigências polifônicas do mundo moderno.
Mente aberta maestrinas arte (Foto: Montagem sobre fotos)
Mente aberta maestrinas arte (Foto: Montagem sobre fotos)

Nenhum comentário:

Postar um comentário