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sábado, 16 de julho de 2016

Falsos modernos

É difícil manter convicções e princípios quando eles contrariam nossos sentimentos amorosos

IVAN MARTINS
13/07/2016

Racionalidade tem limites. Noto em mim, e nas pessoas a minha volta, como é difícil manter convicções e princípios quando eles contrariam nossas emoções. Sobretudo aquelas que envolvem sentimentos amorosos. Abre-se nessas ocasiões uma distância enorme entre discurso e sensibilidade. Por conta dela, gente bacana se comporta de maneira inaceitável. São os falsos modernos.

Carlos Drummond de Andrade, o mais tímido e gentil dos poetas, uma vez fez escândalo nas ruas do Rio de Janeiro ao ver sua amante de braço com outro homem. Ele era casado, não tinha esse direito, mas reagiu aos berros ainda assim – e a moça voltou para ele, pelo resto da vida.

Contei essa história antiga a uma amiga moderna e ela reagiu de forma inesperada. “O amor tem esse direito”, me disse. Depois, passou a contar com doçura nos olhos o caso de um amante que a chamara de puta – ou quase isso – quando soube que ela o havia trocado por outro homem. “Ele estava sofrendo muito”, explicou. Em estado de dor, falsos modernos se tornam autênticos machistas.

Sem esforço, posso lembrar de meia dúzia de ocasiões em que eu mesmo esbarrei nessa fronteira, esbravejando contra quem exercia sua liberdade – que inclui, entre tantas outras coisas dolorosas, o direito de envolver-se com gente que o ex-amor desaprova. Nesses momentos difíceis, viramos todos, ou quase todos, falsos modernos. A paixão fala mais alto do que a razão. O sofrimento sufoca as convicções. Nos deixamos carregar pela dor e nos expomos, nos humilhamos, nos tornamos patéticos e ridículos. Ao fazer isso, naturalmente perdemos o objeto da nossa adoração. Falsos modernos, verdadeiros losers.

A gente sabe de onde vem essa atitude, não? Há machismo nela, mas não só. Muitas mulheres se portam de forma possessiva e irracional e não se pode acusá-las de machismo. Acho mais fácil entender que temos uma cultura afetiva antiquada, doentia, que autoriza homens e mulheres a sentir-se com direito sobre o corpo e os sentimentos do outro. Os homens defendem esses falsos direitos com agressividade e violência, enquanto as mulheres usam formas mais sutis de controle. A sensação de que o ser amado simplesmente nos pertence está em todos nós, inclusive homens e mulheres modernos.

Voltando ao início: duvido da nossa habilidade de racionalizar emoções.

Eu sou capaz de explicar e você é capaz de entender, mas isso não significa que nossas emoções serão modificadas. Os sentimentos profundos que nos ligam – ou nos separam – são impermeáveis à razão e aos argumentos. Refletem experiências e reações sobre as quais não temos ascendência, sejamos modernos ou arcaicos.

Não adianta falar de amor para quem não tem sentimentos para ouvir. Nem adianta explicar o desamor a quem está apaixonado. As pessoas continuarão vivendo suas próprias emoções, imunes à lógica das palavras. A razão se aplica como um freio – não se pode insultar, não se vai agredir, não se vai detratar ou perseguir quem nos machuca –, mas é incapaz de estancar sensações ruins. Não há palavras que reparem uma alma ferida. Apenas o tempo faz isso.

O que as palavras fazem é alimentar o que já existe.

Uma atração estabelecida no subsolo das almas pode crescer com palavras que a confirmem. Uma conversa de ruptura será decisiva para quem secretamente deseja partir. Mas, mesmo um mar de palavras não consegue criar uma paixão do nada, e nem será capaz de destruir aquela que ainda existe. São os sentimentos – por trás e por baixo das palavras, dentro e fundo no interior de nós – que realmente importam. A comunicação criada pelas palavras é supérflua. São as almas que conversam, em silêncio.

Isso nos deixa – vocês percebem? –  com uma divisão interna irreparável. Nossa proposta de convívio se baseia no uso das palavras e no controle das emoções. Mas, na verdade, são as emoções que nos controlam, sob a pele fina da racionalidade. E as palavras frequentemente são inúteis. Explicam, mas não consolam. Iluminam, mas não transformam. Por isso somos assim: falsos modernos, falsos racionais, falsos equilibrados. Seres verdadeiramente perdidos em busca de um amor que nos abrigue e silencie em nós a corrente vã e incessante de palavras.

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