sábado, 9 de julho de 2016

Svetlana Aleksiévitch: “Escrever sobre o amor é mais difícil que sobre a guerra”


Nobel de Literatura afirmou que, se mais mulheres fossem ministras da Defesa, haveria menos conflitos militares

SÉRGIO GARCIA, DE PARATY
03/07/2016
Ao chegar 15 minutos atrasada para a entrevista coletiva na tarde de sábado (2) em Paraty, a escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitchlogo se desculpou, na voz da tradutora. O piso de pedras irregulares da cidade colonial retardou a caminhada, e ela ainda parou para atender a todos que a abordaram no trajeto. Atração maior da Flip, aNobel de Literatura de 2015 se apresentou para o público pouco depois, na Tenda dos Autores. Svetlana é conhecida por alçar a não ficção ao patamar de alta literatura, como revelam seus dois livros lançados no Brasil, Vozes de Tchernóbil – A história oral do desastre nuclear e A guerra não tem rosto de mulher, em que relata a participação delas no conflito. Para cada obra, colheu centenas de depoimentos. Na entrevista, a autora abordou a questão de gênero na literatura e no mercado de trabalho, criticou os líderes mundiais de hoje e pincelou seu novo trabalho, em que desvenda o amor em seu país segundo eles e elas. Falou também de seu histórico enfrentamento da tirania, desde os tempos da União Soviética, quando se viu obrigada a se refugiar, e agora em seu país.
Svetlana Aleksiévitch (Foto: Walter Craveiro)
Elas e eles
Prefiro o trabalho das mulheres ao dos homens. Quando morei naSuécia, o ministro de Defesa era uma mulher. Lembro uma foto dela grávida, passando em revista as tropas. Se todos os ministros de Defesa fossem mulheres, teríamos menos guerra no mundo. Trabalhei 30 anos sobre a história do comunismo russo e entrevistei centenas de homens e mulheres. Sempre as histórias delas eram mais interessantes. O mundo feminino é mais colorido, mais na base do emocional, mas ainda não chegamos ao ponto de igualdade entre gêneros no mercado de trabalho. Na minha terra há muito poucas mulheres na política e em outras áreas expressivas. Há também poucas autoras, que na opinião de muitos só deviam escrever sobre flores, amores e cozinha. Eu mesma quando comecei a escrever sofri questionamentos por abordar temas tão pesados.
Chernobyl
A humanidade não aprende com seus próprios erros. Quando meu livro sobre Chernobyl saiu no Japão, os japoneses disseram que em seu país não aconteceria uma tragédia daquelas. E a gente viu o que veio depois. Fukushima não explodiu totalmente por algum milagre. Aparentemente, os japoneses agem como os russos, que escondem a verdade de seu povo e do mundo. Chernobyl ocorreu num país autoritário, e cada dia temos mais nações assim, onde fica mais fácil ocultar a realidade. Quis escrever um livro para contar o que ocorreu e deixei um relato dos fatos. Cumpri minha missão, o resto é com vocês. 
Guerra
Quando fui à Guerra do Afeganistão para escrever sobre ela, vi muitas correspondentes, o que achei maravilhoso. O comportamento delas era corajoso, com relatos bem interessantes. Na minha terra, as mulheres escrevem melhor do que os homens sobre a guerra. Os meninos são educados dentro da cultura de que a guerra é normal e inevitável, e eles crescem com isso, enquanto para as mulheres a guerra significa morte e sofrimento. Nessa mesma batalha, discuti com um oficial que me perguntou como eu escrevia sobre guerra se nunca tinha dado um tiro. É justamente porque quero preservar em mim esse lado de ser humano normal. A partir do momento em que se pega numa arma, você deixa de ser uma pessoa boa.
Escritora
Muitas vezes sou chamada de escritora das catástrofes, mas não me vejo assim. Apenas revelo a alma humana em momento de sacrifício. Hoje não consigo mais ir a um campo de batalha e ver uma pessoa morta. Mas estou escrevendo sobre o amor e está mais difícil que escrever sobre a guerra.
Novo livro
Estou trabalhando num livro sobre o amor, entrevistando homens e mulheres na Bielorrússia. Elas falam sobre esse tema com mais intensidade, têm mais facilidade para se expressar. Eu mesma tento encontrar resposta por que as mulheres são mais consistentes para falar de amor. Lá, muitas das histórias de amor não são cotidianas, pois guardam muito de tragédias por trás, como o desastre atômico de Chernobyl e as guerras. Não quero ofender os homens, mas eles parecem mais duros e subjetivos nas respostas. O meu problema é encontrar a chave para a voz masculina. Estou à procura de homens interessantes.
Violência contra a mulher
Acabar com a violência não é uma tarefa para as mulheres. Sociedade e governo devem se unir. Quando jovem, era inadmissível uma mulher morar sozinha, e hoje e a sociedade não condena ninguém por fazer essa opção. O que pode defender uma mulher é seu talento. Uma vez fui trabalhar como jornalista num grande jornal, e um repórter perguntou ao editor por que havia me contratado. Ele respondeu que preferia ter trazido um repórter, mas que eu ganhei a vaga porque tinha muito talento. Não sei se o Brasil ainda tem uma presidente mulher, mas isso é um passo grande.
Religião
Em geral, os entrevistados que demonstraram ter mais força interior foram aqueles que tinham alguma convicção religiosa. Tenho o relato de um rapazinho de uma aldeia que se alistou na Segunda Guerra Mundial, que era um combate justo, diante das ações alemãs. Mas ele não conseguia atirar em ninguém no front. Argumentou que não podia fazer o papel de Deus, e acabou morto. Os primeiros que morrem em combate são exatamente os pacifistas, que ficam com dúvida de atirar. Hoje vemos cada vez menos gente com essa crença. Aqui no Brasil as pessoas são religiosas e há todo tipo de crimes hediondos. A violência não tem a ver com religião ou a ausência dela, como no comunismo, mas tem a ver com o ser humano. Hoje na antiga União Soviética há um grande movimento de renascimento religioso, mas, apesar disso, continuam atacando a Ucrânia e a Síria. Muitos leem a Bíblia diariamente e continuam ofendendo e assassinando seu próximo. Nenhuma orientação de qualquer espécie vai conseguir realizar o trabalho de preservar o ser humano. Fazer o bem depende da natureza de cada um.
Oposição às ditaduras
Faço parte de uma cultura em que, se você é um pintor honesto, vai pincelar sempre contra o governo. Optei por ficar do lado que achava correto, e não me arrependo dessa escolha. Tive de me refugiar e perdi empregos, mas para atingir alguma meta na vida é preciso caráter e perseverança. Por mais que pareça banal, a gente precisa amar a vida e a humanidade. Há momentos de desespero, como o atual, em que vivo na minha terra com uma sensação de desilusão. Os democratas perderam o jogo após a Perestroika, e voltou toda aquela simbologia da grande Rússia. Apenas dou minha pequena contribuição.
Donald Trump e Brexit
Voltei há pouco dos Estados Unidos e lá só se fala disso. A primeira coisa que vi no aeroporto assim que desembarquei foi um telão exibindo uma entrevista de Trump, falando os maiores absurdos. Como ocorre na minha terra, as pessoas que nos anos 1990 eram consideradas marginais hoje estão no poder. Os acontecimentos andam em círculos. Estudei a fundo o homem pós-soviético e ele está em constante tensão. Há novas formas de violência e maldade, como o terrorismo em que a gente se encontra na mão de um louco. Temos medo do futuro e procuramos segurança no passado. O mundo precisa começar a viver pelas razões do homem bom. Os líderes mundiais atuais são pessoas comuns, sem vocação para liderança.
Previsão
Não sei o que vai acontecer no futuro. Embora a tecnologia supostamente devesse simplificar o mundo, acho que a vida do homem vai ficar cada vez mais difícil. Para cada geração, as questões estão mais complicadas, e as respostas diferentes. A vida está cada vez mais complexa porque a cada dia que passa nos vemos diante do desafio de nos mantermos humanos, e não me refiro só aos tempos de guerra, mas também à vida cotidiana.

Época

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