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sábado, 10 de setembro de 2016

Márcia Malsar: Os passos de uma heroína na Paralimpíada do Rio


Ao cair e se reerguer na cerimônia de abertura da Paralimpíada, Márcia Malsar dá (mais) uma lição de como sobrepujar a adversidade

SÉRGIO GARCIA
09/09/2016
Márcia Malsar ex atleta Paraolímpica (Foto:  Lucas Uebel/Getty Images)
Márcia Malsar, ex-atleta paralímpica (Foto: Lucas Uebel/Getty Images)
Por ironia, a cena mais tocante da cerimônia de abertura da Paralimpíada estava fora do roteiro que havia sido planejado em minúcias. Ante um Maracanã lotado na noite da quarta-feira, dia 7, quatro personagens foram destacados para conduzir a tocha até o acendimento da pira, um ritual inescapável nesse tipo de solenidade. O segundo trecho do percurso coube à ex-paratleta Márcia Malsar, de 56 anos, que na década de 1980 fez história ao competir no grupo de pessoas com paralisia cerebral. Por obra do imprevisto, ela se tornou a maior protagonista de uma festa repleta de heróis e heroínas. Sob um dilúvio que atingiu o local poucos minutos antes, Márcia recebeu a tocha de Antônio Delfino, que teve a mão direita amputada ainda jovem. Ela pegou o símbolo olímpico com a mão esquerda, enquanto a direita servia para apoiar a bengala de quatro apoios. E assim ela partiu, pé ante pé sobre um carpete encharcado. Foram 139 passos até perder o equilíbrio e tombar junto com a tocha, àquela altura escorregadia. De imediato, duas pessoas do apoio correram para socorrê-la. Márcia levantou-se do chão, pegou novamente o apetrecho e foi em frente em sua caminhada heroica. Mais 89 passos curtos e chegou a seu destino, passando o bastão adiante, sob uma ovação da plateia sem igual naquela noite.
A sequência toda, que durou dois minutos e meio, se presta a diversas parábolas. Resume a determinação inerente a todo atleta paralímpico para suplantar percalços que se revelam, quase sempre, por fatalidade, e mudam a vida para sempre. Exemplifica a persistência de quem já tropeçou muito em obstáculos, mas está sempre disposto a se reerguer. Sintetiza o triunfo de superações cotidianas, como tem sido a conduta de Márcia desde pequena. Após a cerimônia, ela estava orgulhosa de si mesma pela justa aclamação que recebera por acaso. Embora tivesse ensaiado três vezes no próprio Maracanã, não podia prever que a chuva lhe traria tanto transtorno. Ao entrar no carro que a levaria de volta para casa, na periferia do Rio de Janeiro, ela olhou para a irmã, Mara, sua acompanhante, e, orgulhosa de si mesma, repetiu a sentença que virou seu lema. “A vida tem dessas coisas. A gente cai, levanta e continua em frente”, disse ela, que fala com dificuldade.
Márcia teve uma infância trivial até os 2 anos de idade, quando uma infecção de sarampo evoluiu para um quadro de encefalite, que acabou lhe causando danos cerebrais irreversíveis. De início, as previsões eram ainda mais céticas. Ao deixar o hospital, os médicos disseram a seus pais que a menina não conseguiria mais falar nem andar. Nascida no município fluminense de São Gonçalo, filha de um mecânico, já morto, e uma costureira, Márcia teve uma infância austera. Para safar-se do prognóstico dado pelos médicos, empenhou-se em exercícios de fisioterapia. Vivia entre instituições de reabilitação, como a Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (Apae), o Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação (IBMR) e a Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos (Andef). Foi numa dessas atividades que a jovem, em torno de 18 anos, ganhou o incentivo de um treinador chamado Nivaldo, de quem perdeu contato, para se iniciar nas corridas. No episódio da última quarta-feira, ecoaram no ouvido dela os gritos de incentivo de Nivaldo toda vez que desabava na pista: “Levanta, Márcia!”.
Na Paralimpíada de 1984 em Nova York, Márcia foi pioneira com paralisia cerebral. Ganhou um ouro, duas pratas e um bronze
Mesmo que não houvesse todas as dificuldades de ordem motora, seu dia a dia naquela época já seria penoso. Quando começou a se dedicar com afinco ao atletismo, tinha de cruzar o Rio e a Baía de Guanabara para ir de Jacarepaguá, bairro onde morava, até o estádio de Caio Martins, em Niterói. Contava com a ajuda da mãe nessa travessia. Muitas vezes o treinamento era feito sob o calor abrasivo de meio-dia, horário alternativo em que a pista era franqueada aos atletas deficientes físicos. Com muito sacrifício, Márcia se destacou em competições nacionais e acabou selecionada para participar de sua primeira Paralimpíada. Isso ocorreu em 1984, numa competição que inovou com sua divisão entre dois continentes. As provas em cadeira de rodas tiveram como sede Stoke Mandeville, região de um distrito inglês que foi o berço dos Jogos Paralímpicos no fim da década de 1940. Márcia foi para o outro lado. Embarcou para Nova York, onde se realizaram as demais disputas. Teve desempenho excepcional e voltou de lá com um ouro, duas pratas e um bronze em provas de velocidade e cross country – medalhas que podem ser vistas numa exposição que ocupa a Assembleia Legislativa do Rio  de Janeiro até o dia 22.
O feito de Márcia foi extraordinário sob o aspecto esportivo e pelo pioneirismo. Ao estrear no pódio, tornou-se a primeira brasileira vítima de paralisia cerebral a ganhar uma medalha paralímpica. Dessa forma, contribuiu para expandir no país um dos principais propósitos dos Jogos: o de inclusão social. “Numa época em que os pais limitavam muito a atividade dos filhos com paralisia cerebral, ela mostrou que pessoas assim podiam perfeitamente praticar esportes”, diz Michelle Barreto, de 33 anos, doutora em educação física adaptada e autora da tese “Esporte paralímpico brasileiro: vozes, histórias e memórias de atletas medalhistas (1976 a 1992)”.
Entre 2014 e 2015, para sua tese de doutorado, Michelle entrevistou todos os 23 atletas vivos que se enquadram no perfil e constatou que o romantismo era a força motriz dessa turma. “Quando indago qual o fator determinante para a conquista, eles apontam sempre a perseverança e a força de vontade”, afirma a pesquisadora. Nos anos 1980 e 1990, período em que Márcia brilhou nas pistas, era comum a pessoa ser obrigada a largar a carreira esportiva para ir sobreviver em outra atividade. “Naquela época, eu dava pró-labore para o atleta tomar um refrigerante”, lembra João Batista Carvalho e Silva, presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) de 1995, quando foi criado, até 2001. Hoje os atletas profissionais dispõem de infraestrutura de treinamento e podem fazer viagens ao exterior para aprimorar a técnica. Para efeito de comparação, Batista administrou uma verba de R$ 10 milhões em todo o ciclo entre Atlanta 1996 e Sydney 2000. Hoje o CPB trabalha com uma receita de R$ 150 milhões por ano, vinda majoritariamente de uma parcela da arrecadação das loterias determinada por lei.
Festa de abertura da Paralimpíada do Rio.Márcia ajudou a abrir o caminho para a profissionalização (Foto: Jens Buettner/dpa/AFP)
Márcia mora com a mãe, Maria José, de 86 anos, e a irmã, de 52, numa casa em Rio Bonito, cidade a 80 quilômetros do Rio. À medida do possível, leva uma vida independente. Cuida da mãe, cozinha e ajuda na arrumação. Jamais precisou de cadeira de rodas para se locomover. Costumava ir às ruas por conta própria, porém, passou a ficar insegura e agora sai quase sempre acompanhada. Recentemente, embarcou sozinha num ônibus para visitar amigos na cidade mineira de Alto Caparaó. Márcia só fecha a cara para criticar a péssima acessibilidade com que depara no dia a dia. Quando está recolhida, gosta de ver novelas, humorísticos e programas de calouro. “O que vocês viram no Maracanã diz muito mais sobre minha irmã do que tudo o que posso falar dela”, conta Mara. “Ela é uma pessoa independente, determinada e feliz.” Mesmo com tudo desfavorável, Márcia obteve sua maior conquista.

Época

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