quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Mulheres criam rede de solidariedade para famílias de bebês com microcefalia

A última parte da série de reportagens levanta a questão: e da mãe, quem cuida? Aqui mostramos como brasileiras têm doado seu tempo, dinheiro e serviço para sanar as deficiências do Estado
publicado 29/07/2016 por 

*Esta é uma das investigações patrocinadas pelo Programa de Bolsas de Reportagem da Revista AzMina que você ajudou a tornar realidade. Leia o restante desta série aqui.
Roberta e mãe ajudada pelo seu projeto
Roberta, à direita, organizou arrecadações para as famílias mais necessitadas que encontrou.
Tudo começou com a empatia de uma mulher por outras e foi se alastrando como uma grande rede de apoio material e emocional para famílias de bebês com microcefalia. Hoje, dezenas de mães contam com essa comunidade para conseguirem criar seus filhos com o mínimo de dignidade.
Segundo a mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, Ana Carla Vieira, essas famílias precisam de mais que apenas apoio médico assegurado pelo Estado, o que não vem acontecendo. “É essencial fornecer apoio psicológico e financeiro, já que muitas das mães precisam se dedicar exclusivamente aos cuidados do filho”, explica. “Um dos grandes estressores da vida de mães é a busca por atendimentos aos filhos que muitas vezes são inacessíveis, demorados ou inexistentes. E por “serviço de saúde” é importante entender diversas especialidades para além da medicina: enfermagem, fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia e etc, exames, cirurgias, acesso a hospitais.”
Enquanto esse tipo de serviço público não vem, nos salva a irmandade feminina. A empatia por outras mães foi, por exemplo, o motor de Roberta Cerantula. No final do ano passado, nos meses em que o país viva o surto de Zika vírus, ela descobriu que estava grávida do segundo filho. A preocupação em ter de se proteger em um período tão delicado fez a paulistana pesquisar sobre o tema na internet e encontrar a página “Cabeça e Coração”. A plataforma, criada pela jornalista Maria Clara Vieira, pela estudante Maria Julia Vieira e pela economista Cida Nicolau, reúne contato e fotos de mães de bebês com microcefalia que precisam de doações e serviços.
Foi então que Roberta percebeu que também podia fazer parte da outra parte do processo e dar uma mão a mães que não tivessem acesso à mesma rede de apoio que ela. “Fiz uma triagem com três famílias que fossem de São Paulo, para facilitar a logística e para que eu pudesse estar perto dessas pessoas”, conta Roberta. Lançou a página “Microcefalia Vamos Ajudar?”, e mobilizou dezenas de pessoas a doarem artigos de necessidades específicas para essas famílias e produtos em geral, que seriam vendidos e se converteriam em dinheiro para as famílias no que fosse necessário.
Passada essa primeira fase, porém, Roberta enfrentou o problema da logística. Como o surto de Zika vírus atingiu principalmente o Nordeste brasileiro, começaram a surgir pedidos de mães de Natal, Recife e outros lugares atingidos. “Como as pessoas não gostam de doar dinheiro, não tive recursos para fazer com que o projeto crescesse muito para além de São Paulo. É muito caro enviar uma doação para o Nordeste”, relata.
A moça desabafava com uma amiga, que preferiu não ter o nome revelado, quando espalhou o fogo da mudança pro coração dela também: a empresária decidiu que iria bancar a logística do projeto. “Agora estamos em uma triagem para escolher as famílias de fora de São Paulo que mais precisem”. A última ação foi mandar doações, como fraldas e produtos de higiene, para um bebê que está em Natal e nasceu com um grau muito severo de microcefalia.
“Criar um bebê especial não é fácil para quem tem emprego, recursos, família, imagina para quem não tem?”, questiona Roberta.
 INFO_MICROCEFALIA

Além do dinheiro

Pensando no estado psicológico de quem assume a maior parte das responsabilidades sobre essas crianças com necessidades especiais, as psicólogas Anthiele Martins e Julliene Salvino, de Recife, fundaram o projeto “Mainha – mães de bebês com microcefalia”. O grupo existe para que essas mulheres possam compartilhar experiências, elaborar o que sentem e construir uma nova perspectiva frente ao diagnóstico. Através da fala, as psicólogas acreditam, essas mães conseguem aliviar sentimentos de angústia, medo e rejeição.
“Sempre que conversávamos sobre o surto de Zika, nos vinha a preocupação: como essas mães estão reagindo?”, explica Anthiele. “Tudo pode ser agravante nessa situação: aquela gravidez poderia ser indesejada; ou o contrário, pode ser uma gravidez muito planejada e idealizada. De uma hora para outra, independente do caso, vem a microcefalia. Como ficam essas mulheres?”.
Além de oferecer o atendimento presencial e em grupo a essas mães, as psicólogas do “Mainha” produzem vídeos esclarecedores. Mães interessadas podem contatar as psicólogas através da página do grupo no Facebook.
“Cuidar dessas mulheres é também cuidar de seus filhos. A partir do momento em que uma pessoa é cuidada, ela se torna uma cuidadora melhor”, explica Anthiele.

O momento da notícia

Com 35 semanas de gravidez, a pressão alta de Aline Oliveira fez com que os médicos resolvessem fazer seu parto ainda prematuro para salvar a vida do bebê, Pedro. O estresse, ela acredita, pode ter colaborado para esse desfecho.  “Fiquei muito tensa nesse final de gestação. Além disso, ouvi muita coisa desnecessária e muito foi dito sem cuidado. Um médico, por exemplo, falou que o Pedro não nasceria; outro, que ele viveria só dois meses; vários ficaram fazendo previsões horrorosas sobre o futuro dele, sem terem certeza das coisas”.
Natalia Gomes também sofreu um choque ao descobrir, no parto, que sua filha tinha microcefalia: “Quando ela nasceu, eu me assustei com a cabecinha dela, parecia que estava tudo para dentro. O médico disse que ela não viveria nem três dias ou, se sobrevivesse, ia ser vegetando”, desabafa. “Muita gente me relatou que, quando recebeu a notícia, teve uma sensação de luto. Eu chorei muito, mas não cheguei a sentir isso. E aceitei, mas a gente sempre quer um filho que não tenha dificuldades na vida.”
Segundo a psicóloga Anthiele, a angústia do momento em que a notícia é recebida pode gerar depressão pós-parto e transtornos de ansiedade. “As informações ainda soltas que os médicos podem dar, até pelo fato de o surto ser algo recente, podem gerar confusão nessas mães e acarretar muita angústia e ansiedade”, explica. A profissional ainda afirma que, para os pais que não abandonaram esses bebês, o atendimento psicológico também é importante, assim como é para as mães.
Nenhuma das mães entrevistadas para esta série recebe atendimento psicológico. Algumas afirmaram que já pediram o serviço a assistentes sociais, mas que desistiram por causa da burocracia.
Enquanto o atendimento profissional psicológico não chega, as mães contam com a força da rede de amizade que elas formam nas salas de espera de consultórios e hospitais. “Na maternidade onde tive meus gêmeos, várias outras mães tiveram filhos com microcefalia. Então, nós formamos um grupo para mantermos contato”, conta Josiane Santana. “Conversamos sobre nossa rotina, sobre o que os médicos falam, trocamos experiências. Mas quase nunca nos vemos porque a vida não permite, fica muito corrida. Mas quando nos cruzamos em salas de espera, é aquela alegria para conversar!”
Para Ana Carla Vieira, a idealização da figura da mãe em nossa cultura dificulta ainda mais esse processo. “Devido à disseminação de uma visão romantizada sobre a maternidade, muitas mulheres levam um choque inicial com as tarefas e dificuldades sobre as quais ninguém as havia alertado – tendo filhos com microcefalia ou não”, esclarece. “A depressão pós-parto, por exemplo, é um fenômeno pouco divulgado ou discutido e inúmeras famílias não conseguem identificá-la devido ao tabu que é uma mãe sentir-se deslocada ou deprimida após a chegada do bebê. ”
Ainda segundo a profissional, quando um bebê nasce com uma deficiência como a microcefalia, as reações podem ser adversas. “É comum falar sobre a elaboração do luto do filho ‘perfeito’, ou seja, a mudança de imagem desse filho idealizado para a imagem do filho com características vistas como incomuns, como a microcefalia. Esse processo pode envolver a negação, a raiva, a culpa, o medo, a resignação, a revolta. Essas reações não ocorrem necessariamente em todas as mães, não têm uma ordem pré-definida, nem um tempo previsto”.

E você, o que poderia fazer para ajudar? Será que algum dos projetos acima não pode crescer com uma mãozinha sua?

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