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domingo, 11 de dezembro de 2016

Mulheres invisíveis, trabalho precário

Este artigo faz parte da iniciativa “16 dias de ativismo” do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil). 
Isadora Brandão
Sexta-feira, 9 de dezembro de 2016
Um relatório publicado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) em janeiro de 2013, que conta com informações coletadas em 117 países, estimou em 7,2 milhões o número de trabalhadoras domésticas no Brasil, sendo esse o maior contingente de empregadas domésticas do mundo. Mais da metade dessas trabalhadoras não tem assegurado o limite da jornada de trabalho e cerca de 45% não tem direito a descanso semanal remunerado. Pouco mais da metade de todas as trabalhadoras recebe o salário mínimo equivalente ao das demais categorias.[i]
No Brasil, durante muito tempo, praticamente não existiu um horizonte normativo garantidor de direitos trabalhistas para as empregadas domésticas. Mesmo após o seu “nascimento jurídico”, em 1972, predominou um tratamento jurídico-formal condizente com o de uma subcategoria de trabalhadoras. Essa situação de marginalização não foi plenamente sanada com o advento da festejada EC 72/2013, pois, ao invés de extirpar da ordem jurídica o parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal, eliminando de uma vez por todas qualquer subsídio legal para construções doutrinárias e  jurisprudenciais contrárias à equiparação dos direitos das trabalhadoras domésticas aos das demais categorias profissionais, preservou parcela do dispositivo legal que tende a ser manipulada visando a perpetuação do cenário discriminatório.
Apesar desse grave quadro de desproteção jurídico-trabalhista – marcado tanto pelo reconhecimento capenga de direitos, quanto pela baixa aplicabilidade das normas já positivadas -, pouca atenção tem sido concedida a essa realidade, tanto no plano político, quanto no jurídico, mesmo entre os setores mais progressistas.
Isso ocorre por serem as mulheres negras e pobres as principais responsáveis pela realização diuturna desse trabalho.

Ou seja: o déficit de proteção jurídico-trabalhista das empregadas domésticas não pode ser decifrado ao largo de uma análise imbricada das subestruturas de raça, classe e gênero e dos seus condicionamentos recíprocos.

De fato, a visibilidade e a valorização do trabalho reprodutivo passam pela explicitação da sua importância para a garantia do bem-estar e da sustentabilidade da vida humana, assim como da sua relevância econômica, na medida em que assegura a reprodução da força de trabalho a baixos custos, sob a ótica do Estado e do empresário capitalista. Ademais, ela não será possível enquanto não se promover a ruptura com o arquétipo racista que enxerga esse trabalho como um “serviço de mucama”, como atividade manual abjeta típica de grupos sociais inferiorizados. Dito de outra forma, não é viável enquanto persistir a lógica racista – obnubilada pelo mito da democracia racial sobre o qual se edificou a narrativa hegemônica de nação –, que intenta frustrar qualquer possibilidade de humanização de negros e negras e de sua equiparação com os brancos em qualquer esfera da vida social.
Do mesmo modo se mostrará inviável enquanto permanecer representado como uma atribuição prioritariamente feminina e como um conjunto de tarefas exercidas pela mulher em nome do amor e/ou por aptidão natural. Afinal, a separação entre trabalho de homens e trabalho de mulheres, princípio regente da divisão sexual do trabalho, opera concomitantemente com uma lógica hierárquica que atribui valores distintos ao trabalho de acordo com o sexo de quem o realiza. Ademais, na medida em que este trabalho é realizado no âmbito doméstico e familiar deve enfrentar o desafio de romper com a dicotomia ideológica entre público/privado, típica da tradição liberal patriarcal, interessante à manutenção do status quo e conscientemente reforçada pelo Direito e pelo Estado na produção legislativa e na elaboração e implementação de políticas públicas.
Nesse sentido, a visibilidade e a valorização desse trabalho significam não apenas um elemento de tensão com a lógica capitalista, na medida em que tende a gerar a ampliação dos custos de produção e a redução da mais-valia global, mas também com a lógica patriarcal e com a estratificação racial que têm sido racionalmente utilizadas para naturalizar a exploração, reificação e silenciamento das mulheres negras no interior desse sistema.
Isso nos leva a concluir que não é a “natureza” ou a “peculiaridade” do trabalho doméstico que levam à marginalização das empregadas domésticas da esfera de proteção trabalhista. É, isso sim, a confluência das contradições de gênero, raça e classe, ao longo da história do colonialismo e do pós-colonialismo no Brasil que explica a desumanização dessas trabalhadoras e, por conseguinte, o desvalor socioeconômico e a desproteção jurídica de seu trabalho.
A história política das trabalhadoras domésticas sugere que, em seu esforço de resistência e re(existência), há uma transitar entre os movimentos sindical, negro e feminista movido pela percepção de que o quadro teórico-político sobre o qual estão assentados não engloba suficientemente as suas experiências específicas, as suas demandas reivindicatórias, tampouco os saberes produzidos a partir do seu ponto de vista.
O relato de Creuza de Oliveira[ii], do Sindoméstico da Bahia, ilustra essa percepção: “Quem participava do movimento feminista no começo eram as mulheres brancas e patroas. E sempre eu falo. Uma vez teve uma companheira feminista que se chateou comigo: “Ah! Não diga isso”. Porque quando eu disse a ela: “nós, trabalhadoras domésticas, somos discriminadas e violadas nos nossos direitos por todos: pelas mulheres que estão no movimento feminista, que tá lá gritando liberdade sexual, direito à maternidade, direito a não sei o que, ao mercado de trabalho. Mas ela não quer que a mulher doméstica, trabalhadora doméstica, negra, que tá lá dentro da casa dela, estude, não quer que tenha a sua vida sexual ativa, não quer que ela tenha filho, não quer que tenha a sua cidadania, que participe politicamente.” (…) “Quando você vai pro movimento sindical também, o companheiro tá lá no sindicato dele […]. Aí ele tem uma trabalhadora dentro da casa dele, ela não cumpre. Ele tá dentro do sindicato querendo reposição salarial, direito a isso, banco de horas. E aí ele esquece que a trabalhadora está dento da casa dele merece ter salário justo, que merece ter carga de trabalho respeitada e tal. E você vai pro movimento negro, muitos companheiros que são doutores […] que tem um salário digno, que dá pra pagar um salário digno, direito pra trabalhadora, justo, e não quer pagar porque ele vê essa categoria como subalterna, que não estudou. E aí não quer também respeitar os direitos […].”[iii]
Observa-se que as trabalhadoras domésticas, nesse trânsito entre diversos movimentos (negro, sindical e feminista), vivenciam um constante “não-lugar” identitário e reivindicatório. É a partir desse fenômeno, que envolve pertencer a um grupo e, ao mesmo tempo, estar para além dele, que se desenvolve a consciência das mulheres negras, a qual Patrícia Hill Collins designa de “consciência opositora”. [iv]
A interseccionalidade, conceito-metáfora cunhado pela jurista afro-americana Kimberle Crenshaw em 1989[v] é fruto, justamente, de um esforço intelectual e de organização do ponto de vista das mulheres negras. Partindo das experiências das mulheres afro-americanas, Crenshaw revela a perspectiva unidimensional e mutuamente excludente a partir da qual as categorias “gênero”, “raça” e “classe” são trabalhadas pelos movimentos políticos, organizações não governamentais e órgãos nacionais e internacionais de direitos humanos. Isso ocorre, por exemplo, na medida em que as mulheres brancas e os homens negros, respectivamente, são tomados como parâmetro central para identificação do que é “discriminação de gênero” e do que é “discriminação racial”.
Assim, para além dos efeitos materiais da interseccionalidade–responsáveis por situar as mulheres negras na base da pirâmide social – há também os seus efeitos políticos, que produzem a invisibilidade e sub-representação desse grupo.
Desse modo, coloca-se como questão central para a concretização dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas o apontamento dos óbices existentes à concretização da isonomia. Essa tarefa pressupõe o alargamento da noção de dignidade da pessoa humana, paralelamente à desmistificação da figura do “sujeito universal” que, na prática, tem correspondido ao homem/heterossexual/branco/proprietário/ocidental.
 O olhar interseccional, na medida em que contribui para a visibilização das experiências de exclusão e restrição de direitos que afetam as mulheres negras, coloca-se como uma ferramenta útil e urgente numa sociedade como a brasileira, estruturalmente autoritária, pautada por valores estamentais, demarcada por um apartheid latente e silencioso, no bojo do qual direitos básicos são desfrutados como privilégios.
Isadora Brandão Araujo da Silva é defensora Pública do Estado de São Paulo. Mestra em Direito pela Universidade de São Paulo.


[i] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2014.
[ii] Creuza de Oliveira foi presidente da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) no primeiro mandato do governo Lula, época em que integrou o Conselho Nacional de Políticas da Mulher da Secretaria Especial para as Mulheres e o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial da Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, ambas ligadas à Presidência da República.
[iii] BERNARDINO-COSTA, J. Sindicato das trabalhadoras domésticas no Brasil: teorias da descolonização e saberes subalternos. Brasília, 2007. Tese de Doutorado. Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, 2007.
[iv] COLLINS, P. H. The social construction of black feminist thought.  In: Signs, v. 14, n. 4. Common Grounds and Crossroads: race, ethnicity, and class in womens`s lives, 1989, p.745-73.
 [v] CRENSHAW, K. Documento para o Encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. In: Revista de Estudos Feministas. Ano 10, 1º semestre 2002.
_________________. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. Painel: Cruzamentos raça e gênero. Ação Educativa, 2012. 
CRENSHAW, K. Mapping the margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence against Women of Color. Standford Law Review, n. 43, 1991, p.1241-1279. 
_________________. Beyond entrechment: race, gender and the New Frontiers of (Um) equal Protection. In: International perspectives on gender equality & social diversity. Tokohu University Press, 2008. 
_________________. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory, and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum.1989, p.39-52. Disponível em:

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