Volta e meia me deparo com membros de grupos historicamente oprimidos afirmando que “não sou/me sinto vítima”. Muitas das vezes essas mesmas pessoas chegam a reconhecer e compartilhar episódios vivenciados de discriminação. Isso acontece porque algumas pessoas oprimidas acreditam que o simples fato de não se deixarem abater pelas agressões (quase cotidianas) as impede de ser vítimas de qualquer coisa. Como se um soco deixasse de ser uma agressão por não ter deixado hematomas ou não ter quebrado nenhum dente.
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“NUNCA SOFRI POR RACISMO”

Quando grupos de militância usamos o termo vítima não pretendemos dizer que todo alvo de opressão se sinta mal ou que de fato sofra por isso. Não há a pretensão de dizer como toda pessoa oprimida encara (psicologicamente) a opressão. Mais especificamente, no caso do racismo, não pretendemos dizer que toda pessoa negra se sente –ou deveria se sentir – abalada ou diminuída, mas sim que racismo produz violência – seja esta física ou simbólica. Pretende-se reconhecer que o racismo é prejudicial a vidas negras e, portanto, deveria deixar de existir. Que deve ser combatido em todos os níveis que se manifesta. Seja de forma branda, sutil, descarada, brutal ou letal.
O termo vítima diz respeito a um dano involuntário de quem é atingido(a) pelo racismo/machismo/homotransfobia/etc. Se essa agressão entristece, machuca ou motiva não é a questão. O problema está no fato de que todas as vidas negras, cientes ou não disso, foram e são afetadas pelo racismo que orientou a construção de todas as instituições nas Américas. Tijolo por tijolo. Lei por lei. Quer aceitemos essa ideia ou não. Pois, tal como uma herança, a soma dos males cometidos contra a população negra ainda nos acompanha. Está presente tanto em nossas veias, quanto nos (nem sempre visíveis) obstáculos a serem superados, na responsabilização de pessoas negras pelo seus insucessos individuais e coletivos e, principalmente, na cisma em negar reparações por todo o suor e sangue negros derramados na construção desse país para benefício dos mesmos brancos que, não coincidentemente, ainda dominam os postos de autoridade.

“MAS EU SUPEREI”

Contrariar estatísticas, ascender sócioeconomicamente e se tornar uma pessoa negra-exceção através do esforço próprio ou acumulado em nada anula o racismo. E muito menos o fato de que práticas e discursos racistas permanentemente limitam, adoecem e ceifam vidas negras – há gerações! Uma lógica um pouco óbvia, mas o racismo brasileiro é tão cínico que nega a própria existência quando enaltece casos de superação sem honestamente responder: afinal o que esse ponto preto fora da curva teve que superar pra chegar aonde a maioria dos seus iguais simplesmente não alcança?
A versão da história que nos ensinam deixa apenas subentendido que a barbárie da escravização não condenou apenas indivíduos negros, mas também seus descendentes e antepassados. Pessoas escravizadas geraram e foram filhos e filhas de outras pessoas escravizadas, num ciclo que se estendeu por mais de três séculos. Sendo assim, nenhuma alforria ou até mesmo a abolição jamais poderiam ter sido suficientes para livrar alguém do estigma da negritude. Um fardo herdado por toda pessoa (lida) negra nesse país. Até porque a liberdade não foi a única coisa que os europeus sequestraram, mas a própria humanidade dos povos que colonizou. Ou seja, a ruptura dos grilhões da senzala foi incapaz de transformar mercadorias/ferramentas em seres humanos, em cidadãos com direitos, principalmente à dignidade. Pelo contrário, as instituições brasileiras sempre usaram a “justiça” para punir essa parcela marginalizada, sem jamais ter assumido a culpa por toda a exploração que permitiu existir ao legislar tal exploração.
Logo, usa-se o termo vítima não por dó ou para inflar ainda mais o ego da branquitude, mas sim pelo reconhecimento de que a cada dia em que os governantes nada fazem para verdadeiramente compensar todos os sacrifícios negros exigidos – em nome da ganância e da arrogância brancos – , esse enorme capítulo da nossa história não se encerra. Enquanto o que a própria lei dos brancos entende por Justiça não for feita continuaremos lembrando. Ainda que quem bateufinja ter esquecido.

“AQUI NÃO TEM VÍTIMA NENHUMA!”

Aos ainda descrentes, ressalto que é até contraditório um movimento que se orgulha de toda a trajetória de sobrevivência e resistência dos nossos ancestrais africanos adotar esse termo a partir de uma perspectiva condescendente de autopiedade. E deve ser exatamente por isso que o termo “vitimização” seja mais comumente empregado por pessoas brancas  – ou embranquecidas pelo auto-ódio racista – do que por pessoas negras em movimento. Pois, quando empregamos o conceito de “vítima” não esperamos pela piedade branca – até porque 358 anos de total desprezo por vidas não-brancas foi mais que suficiente –, mas nos referimos a um grupo, a uma coletividade que sofreu danos e prejuízos históricos e que precisa ter seu sofrimento admitido e devidamente ressarcido para que possamos seguir, enfim, adiante – conjunta ou autonomamente.
Pela certeza de que algozes jamais se auto-punirão que devemos entender como inaceitável qualquer sugestão de que todo esse passado deve ser deixado para trás. Temos impunidade demais nesse quesito para o país com a quarta maior população carcerária do mundo. E, a cada ano que passa fica mais evidente que o intuito é deixar tudo passar em branco. Então, para remediar essa ferida, precisamos primeiro deixar de negar a sua existência. É impossível cicatrizar um ferimento que é remexido a cada 23 minutos por omissão desse estado genocida – entre outros tantos agravantes. Por causa de tudo isso lembramos. Pois, a cada oportunidade perdida, demanda ignorada e retrocesso firmado fica mais estrondosa a dúvida: a coletividade branca tem consciência ou teremos que continuar fazendo esse trabalho por eles também?!

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