terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O amor e as outras coisas

Certas pessoas nos provocam desejo, outras nos causam ternura, algumas misturam as duas coisas em proporção que nos confunde

IVAN MARTINS
07/12/2016

Uma das minhas amigas chegou ao trabalho com um vestido esquisito, comprado às pressas na Pernambucanas. Dormira com um colega de trabalho depois da festa da firma e não queria entrar no escritório com a roupa da véspera. Todo mundo iria perceber.

Ela contou essa história ontem, feliz da vida, meia hora antes de falar sobre o quanto ainda estava ligada ao ex-marido e das dificuldades da separação. “Acho que ainda amo ele”, concluiu, com uma carinha melancólica. “Mas, francamente, depois de um ano, não tenho mais certeza do que eu sinto”.

Reparem: ela não estava triste. Estava feliz com a sua aventura adolescente. Mas, ao mesmo, tempo, era capaz de perceber a presença de outro sentimento pairando sobre a vida dela como uma sombra e uma possibilidade, mesmo que não saiba mais que nome dar a ele.

Eu sei. Chamo de amor, para diferenciar de outras coisas.

Cada um de nós é capaz de cultivar uma enorme variedade de sentimentos eróticos e românticos. Certas pessoas nos provocam desejo, outras nos causam ternura, algumas misturam as duas coisas em proporção que nos confunde. Mas, a sensação que nos impele, que afinal põe para trás hesitações e resistências, o impulso que faz com que coloquemos as meias do outro na nossa gaveta e seu corpo em nossa cama todas as manhãs, esse é de outra natureza.

Eu chamo de amor, para diferenciar de outras coisas.

Os românticos acreditam que esse sentimento acontece por mágica. Você bate o olho numa pessoa e ela, instantaneamente, começa a dialogar em silêncio com o seu código genético, criando um laço indissolúvel. Eu acho que se passa de outra forma.

Por alguma razão misteriosa, a gente permite que alguém se instale dentro de nós, com suas alegrias e defeitos. Não é um processo mágico e nem instantâneo. Ele é corporal, porque tem beijos e sexo, e espiritual, porque tem muitas palavras, olhares e silêncios envolvidos. Não acontece instantaneamente, embora o encantamento inicial às vezes pareça amor. Leva um tempo até que a vida sem aquela presença não pareça vida.

Quando, enfim, a mudança de alma está feita, e o outro se moveu pelo convívio para dentro de nós, se torna difícil removê-lo. É possível brigar com ele, negligenciá-lo, enganá-lo e até mesmo abandoná-lo. Mas não o remover. Mesmo depois, muito tempo depois, quando o ser humano de carne e osso já saiu da nossa vida, um pedaço dele fica ali, no nosso interior, iluminando e assombrando. Um dia essa presença mais que humana se dissipa, mas também isso demora.

É por isso que a psicanalista Regina Navarro Lins, minha amiga, diz que essa vida de gostar e separar é tão custosa. Leva muito tempo e causa muita dor o processo de se desvincular de alguém. A ideia de que andaremos felizes de um relacionamento para outro parece a ela tão idealizada quanto a ideia de que saltaremos incólumes de um carro em movimento para outro carro. Subestimamos os ferimentos envolvidos no processo, diz ela, e o tempo real que leva para curá-los.

Eu entendo o que a Regina diz, e de forma muito concreta, concordo. Só não acho que temos alternativa. Saltar do carro em movimento, com um sorriso nos lábios, é o que nos cabe fazer, de vez em quando.

O que eu enxergo na aventura da minha amiga é que uma emoção não impede a outra. A presença de um amor dentro de nós não quer dizer que a gente não possa viver outros sentimentos de erotismo, simpatia, ternura. Isso atenua tremendamente a transição. Isso é como estender um tapete quando saltamos, ou somos empurrados, para fora do carro.

Somos bichos repletos de emoções e o repertório moderno permite que a gente explore todas elas, às vezes simultaneamente. Podemos passar um dia de volúpia nos braços de alguém e adormecer com saudades de outra pessoa. Somos assim complicados, assim bonitos.

Minha amiga talvez passe outro ano ruminando seu casamento encerrado. Enquanto isso, ela vai ser triste e feliz, alternadamente. Vai se sentir desejada e desprezada. Vai querer e desdenhar. Vai rir de si mesma e desesperar-se. Vai perceber que é bonita. Vai se achar feia. Viverá todos os dias de forma plena ou vazia, de acordo com o que se oferecer a ela, e de acordo com o que ela se permitir abraçar. Vai comprar outros vestidos na Pernambucanas, imagino.

No processo, talvez descubra que existe amor e que existem também outras coisas, todas elas lindas, boas, dignas de serem experimentadas.

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