Natacha e Tiago trouxeram um projecto solidário para Portugal em que peças de vestuário feitas de lãs e fios permitem angariar dinheiro para as famílias que vivem numa pequena cidade da Síria. As mulheres de Qara fazem tudo à mão e sustentam os filhos no meio dos destroços de guerra
Texto de Andreia Cunha • 21/01/2017
Por detrás de uma campanha de angariação de fundos existem rostos que querem fazer a diferença. Mas este projecto não é sobre Natacha Lopes e Tiago Ferreira. O projecto Qara – Handmade Syria é sobre as mulheres de uma pequena cidade nas montanhas da Síria que lutam todos os dias para sustentar as famílias. É sobre mulheres que ficaram sem emprego, que nunca tiveram a oportunidade de estudar e que vivem com os maridos, que apenas conseguem algum rendimento quando há trabalho nas obras, enfrentando ainda as dificuldades de alimentar dois ou três filhos. “Histórias de vida muito diferentes” que têm em comum “o flagelo que está a acontecer neste momento na Síria”.
Há cerca de dois meses que Natacha Lopes, natural do Porto, conheceu uma realidade que a impressionou. “Decidi deixar de ser uma espectadora passiva deste flagelo quando me chegou a casa uma pessoa que teve contacto com algumas mulheres, irmãs e voluntárias que estavam a ensinar as senhoras da aldeia a tricotar para depois tentarem vender as peças”, conta em entrevista ao P3. Foi Tiago, o companheiro de 39 anos, que regressou de uma viagem à Síria, em Novembro do ano passado, com imagens reais de um país destruído pela guerra. A situação que fotografou no mosteiro Saint James the Mutilated deixou o repórter de imagem da TVI cheio de vontade de ajudar: “O Tiago veio rendido ao povo da Síria, diz que é um povo com uma bondade sem igual e que mesmo numa situação de pobreza está sempre disposto a partilhar. E o impacto que teve ao ver aquelas mulheres a trabalhar levou-o a trazer a mala cheia de peças ainda sem pensarmos numa iniciativa para ajudar”. Para além do “sofrimento” que vivem nos dias actuais, “estas pessoas tinham, antes da guerra, um país com muito boas condições e educação e saúde gratuita para todos”, uma “realidade que chega até nós completamente destruída”.
Foi assim que, a partir de um testemunho em primeira mão, se “abriu uma janela de oportunidades”. Com 35 anos, Natacha começou a pensar como poderia ajudar as famílias a quem foi roubado tudo. “Nós estamos habituados a ajudar projectos e organizações grandes e isso, muitas vezes, não funciona. Acredito que temos que apostar em micro-projectos, ajudas pontuais e mais directas para as vidas destas pessoas”, confessa. Acabou por vender algumas das peças que o Tiago trouxe e “a resposta foi muito boa”. O contacto através das redes sociais com uma das voluntárias do projecto na Síria, uma albanesa responsável pela formação manual das mulheres envolvidas, foi o que precisaram para “criar uma ponte” e tentar trazer mais peças para Portugal. “Sempre que algum voluntário ou alguém do mosteiro vem à Europa traz uma encomenda. Só com as primeiras peças que o Tiago trouxe da Síria conseguimos reunir, através da compra e de donativos, o triplo do valor que era esperado e soubemos que, com esta pequena ajuda, conseguiram alargar o projecto no mosteiro”.
Os 150 euros angariados com as primeiras peças foram suficientes para acrescentar cinco famílias (da cidade a cerca de 95 quilómetros de Damasco) ao projecto, que já contava com dez. O valor parece pouco significativo, mas faz toda a diferença nas casas de famílias que “vivem com cerca de 40 ou 50 dólares por mês, o valor que um homem recebe em média”. “Por vezes pensamos que o que estamos a fazer é muito pouco, mas só com este dinheiro é possível ajudar as famílias a comprar alimentação e materiais para os jovens frequentarem a escola”, explica a psicóloga. Entre agulhas, fios e lãs, estas mulheres, além de criarem o sustento das próprias famílias, estão também a aquecer algumas famílias portuguesas que também se juntaram a esta causa através da compra de luvas, chapéus, carapins, vestidos, entre muitas outras peças feitas à mão.
Será muito bom sinal se um dia Natacha visitar a Síria para conhecer pessoalmente estas mulheres e o país que, de acordo com dados da agência de refugiados das Nações Unidas, conta com mais de quatro milhões de refugiados registados. Para já, o desafio é continuar a “ajudar pessoas que estão a sofrer” e a viver em dificuldades, muitas delas porque tiveram de regressar à Síria depois de terem “uma resposta negativa do resto do mundo”.
Um projecto em que toda a ajuda é bem-vinda
Até agora, o projecto solidário com um mês de existência não parou de receber novas encomendas de portugueses interessados em apoiar famílias sírias. “É incrível saber que conseguimos ajudar mais famílias e ainda nos dá mais vontade de continuar”, diz Natacha, entusiasmada, depois de receber mais uma encomenda em sua casa. O preço das peças é meramente indicativo. São as senhoras que dizem um valor base e Natacha acrescenta um pequeno donativo ao custo final que ronda, na maioria das vezes, os cinco e dez euros. Cada peça é fotografada individualmente e colocada na página do projecto e no Facebook, onde estão também colocadas as fotografias de alguns dos compradores — desta forma, quem produz as peças também pode ver quem as usa em Portugal.
Os dois portugueses não estão sozinhos e têm recebido a ajuda de amigos interessados em apoiar e dar sugestões para o desenvolvimento da iniciativa. Mas, mesmo assim, Natacha sublinha que toda a ajuda é bem-vinda: “É mesmo importante toda a ajuda que nos possa chegar, não só a comprar as peças, mas a agilizar as encomendas que vêm de muito longe, de um país em que não é simples transportar encomendas para fora”. De qualquer modo, os contributos só podem aumentar se continuarem a vender as peças que têm chegado a Portugal.
Na Síria, o entusiasmo também se faz sentir com o aumento da produção: “as senhoras querem saber quais são os produtos que têm mais interesse aqui e depois pedimos esses modelos em maior quantidade”. Aqui, Natacha e Tiago são apenas os intermediários de uma causa. Foi a perseverança das mulheres sírias e o passado têxtil deste país que permitiram transformar materiais em vestuário e em novos rendimentos. “Mesmo do outro lado do mundo podemos fazer algo para ajudar” e o resultado é sempre positivo. “O que sinto é que estamos a fazer muito pouco mas, se pensarmos localmente, estamos a ajudar famílias com filhos e isso faz diferença nas suas vidas”.
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